segunda-feira, 21 de julho de 2014

Prescrição Racional de Medicamentos em Odontologia.



Qual o papel do odontólogo na busca do uso racional de medicamentos? É preciso vencer a visão da indústria que estimula a automedicação, melhorar a formação e combater a ideia de que o profissional tem restrições para prescrever.

Autor: Gláucio de Morais e Silva*


O Uso Irracional de Medicamentos tem suscitado discussão de fundamental importância e grande relevância, pois antes de tudo, é um problema de saúde pública e fonte de preocupação dos gestores e farmacoeconomistas de todo o mundo.

No Brasil, pelo menos 35% dos medicamentos adquiridos utilizados na automedicação. Os medicamentos respondem por 27% das intoxicações e 16% dos casos de morte por intoxicações. Além disso, segundo a OMS, no mundo, 50% de todos os medicamentos são prescritos, dispensados ou usados inadequadamente. De 25 a 70% do gasto em saúde, nos municípios brasileiros, correspondem a medicamentos, em comparação a menos de 15% nos países desenvolvidos, como, por exemplo, a França, que gasta 11%. Os hospitais gastam de 15 a 20% de seus orçamentos para lidar com as complicações causadas pelo mau uso dos medicamentos, sem esquecer o uso exagerado na aplicação de injetáveis e uso indiscriminado de antimicrobianos.

A Organização Mundial de Saúde define que há uso racional de medicamentos quando os pacientes recebem medicamentos apropriados para suas condições clínicas, em doses adequadas às suas necessidades individuais, por um período adequado e ao menor custo para si e para a sua comunidade. Parece simples executar o uso racional de medicamentos, mas o que se mostra é uma realidade muito diferente.

Apesar da melhora no acesso aos serviços de saúde na última década, o usuário ainda encontra dificuldades para ser atendido pelo profissional prescritor (Cirurgião-Dentista e Médico). A indústria, que com a visão centrada nos lucros investe duas vezes mais em marketing do que em pesquisa e em desenvolvimento, tem sido um estímulo frequente para o uso inadequado dos medicamentos. Sobretudo porque tende a ressaltar os benefícios e omitir ou minimizar os riscos e os possíveis efeitos adversos, dando a impressão, especialmente ao público leigo, que são produtos inócuos, influenciando-os a consumir como qualquer outra mercadoria. “Tá com dor de cabeça? chama a Neosa” diz o comercial que faz referência à dipirona, analgésico de venda livre e menor segurança clínica disponível no Brasil.

O Cirurgião-Dentista, geralmente, não se interessa pelas discussões envolvendo o tema prescrição de medicamentos. É o reflexo de sua formação acadêmica, onde o conteúdo de base teórica em farmacologia é dissociado das necessidades clínicas. No Sistema Único de Saúde, não há nenhum interesse dos gestores estaduais e municipais em educação continuada de seus profissionais.

Há necessidade de considerar vários aspectos para alcançar os objetivos do uso racional de medicamentos, dentre eles a orientação e conscientização dos usuários, profissionais de saúde, políticas públicas, indústria farmacêutica, o comércio, especialmente as ações de governo.

A principal ação institucional, no Brasil, em favor do incentivo ao uso racional de medicamentos foi a criação, em 2007, por meio da Portaria nº 427/2007, do Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos pelo Ministério da Saúde do Brasil, atendendo uma recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS). Compõem esse Comitê várias instituições, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), os Conselho Federais de Odontologia, Medicina, Farmácia, Ministério da Educação e Cultura (MEC), Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS), Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), entre outros. O Comitê possui caráter consultivo e tem por finalidade orientar e propor ações, estratégias, atividades, identificar e propor estratégias e mecanismos de articulação, monitoramento e avaliação direcionados à promoção do uso racional de medicamentos, de acordo com os princípios e as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). 

O cirurgião-dentista pode prescrever qualquer classe de medicamentos que tenha indicação comprovada em odontologia, inclusive os de uso controlado. Os mais comumente administrados pelos cirurgiões-dentistas são anti-inflamatórios, analgésicos e antimicrobianos, exigindo, entretanto, que profissional tenha conhecimento farmacológico da medicação prescrita, bem como seus adversos, possíveis interações, indicações e contraindicações.

É comum se ter notícias de colegas que tiveram suas prescrições não dispensadas na farmácia pelo farmacêutico, sob a alegação de que “o dentista não pode prescrever esse ou aquele medicamento”, especialmente os de controle, às vezes por desconhecimento do profissional farmacêutico sobre os medicamentos que, embora não sejam fármacos usualmente prescritos pelo Cirurgião-dentista, têm indicação em algumas situações especiais.

            Em primeiro lugar, vejamos o suporte legal que confere legitimidade à prescrição: A prescrição de medicamentos pelo Cirurgião-Dentista é regulamentada pela Lei 5.081, de 24 de agosto de 1966, a qual determina, no artigo 6, inciso I: “que o profissional deve praticar todos os atos pertinentes à Odontologia, decorrentes de conhecimentos adquiridos em curso regular ou em cursos de pós-graduação” e no inciso II: “que compete aos Cirurgiões-Dentistas prescrever e aplicar especialidades farmacêuticas de uso interno e externo, indicadas em Odontologia”. O inciso VIII ainda afirma que é direito do Cirurgião-Dentista “prescrever e aplicar medicação de urgência no caso de acidentes graves que comprometam a vida e a saúde do paciente”. 

Conforme disposto na Portaria SVS/MS n.º 344/98, o cirurgião-dentista somente pode prescrever substâncias e medicamentos sujeitos ao controle especial para uso odontológico (artigo 38 e 55, § 1º), ou seja, a portaria permite aos dentistas que prescrevam tanto na Notificação de Receita A (amarelo) e B (azul) como na Receita de Controle Especial.

Não existe uma lista do que deve ou não ser prescrito, criar listas de restrições para prescrição pelo odontólogo seria desconsiderar os rápidos avanços da ciência, pois o medicamento que hoje não tem indicação em odontologia, num futuro poderá ter, exemplo disso é a talidomida, antes sem indicação em odontologia, atualmente indicada, com redução em até 90% nos casos de aftas e recorrentes em pacientes imunossuprimidos e nas aftas complexas causadas pela doença de Behçet. Portanto, não é o medicamento em si que é permitido ou não, mas o uso a que ele se destina.

Não há justificativa para um cirurgião-dentista prescrever, por exemplo, medicamentos para doença de Parkinson ou mal de Alzheimer, tratar obesidade (anorexígenos), anabolizantes, déficit de atenção com hiperatividade, depressão ou epilepsia, tratar a diabetes ou hipertensão. 
Os principais fármacos sujeitos a controle, os quais o cirurgião-dentista pode utilizar no seu arsenal terapêutico são: Analgésicos Opióides que podem ser agonistas fracos (codeína, tramadol, propoxifeno, etc.), utilizados em dores de moderadas a intensas causadas por pós-operatório nas cirurgias orais menores e extra-orais; e potentes (morfina), de boa eficácia no tratamento de pacientes com dor oncológica, mista ou neuropática.

Os benzodiazepínicos utilizados (alprazolam, bromazepam e diazepam, etc.), que apresentam ação ansiolítica, hipnótica e mio-relaxante, objetivando realizar sedação consciente, indicados em pacientes acometidos de intensa ansiedade por ocasião do atendimento. 
Os antidepressivos (amitriptilina, imipramina, desipramina, paroxetina, fluoxetina, mianserina, dexepina) e anticonvulsivantes (fenitoína, ácido valproico, topiramato, lamotrigina, gabapentina, carbamazepina, etc.) em dores neuropáticas (neuralgia do trigêmeo, neuropatia pós-traumática, dores pós-herpética), doenças crônicas com disfunção da articulação temporomandibular (ATM), síndrome da ardência bucal e dores oncológicas, entre outras. Indicações sempre embasadas em judiciosa anamnese, diagnóstico preciso, individualizando a conduta no manejo do paciente e bom senso por parte do profissional. 
A lei nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973 que dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, capítulo VI - Do Receituário no art. 41 determina: “Quando a dosagem do medicamento prescrito ultrapassar os limites farmacológicos ou a prescrição apresentar incompatibilidades, o responsável técnico pelo estabelecimento solicitará confirmação expressa ao profissional que a prescreveu”. Estes esclarecimentos podem ser obtidos pelo telefone ou por escrito, ou através do Conselho Regional de Odontologia, que ouvirá o profissional e emitirá parecer.


Recusar-se a dispensar o medicamento ao paciente, sem base na legislação ou sem consulta ao profissional prescritor pode representar grave infração ética ao farmacêutico, além de repercutir negativamente na relação paciente-CD, representando ainda um dano maior ao paciente, pois este não poderá utilizar medicação recomendada, restando prejudicado o tratamento e possibilidade de exacerbação dos sintomas.

*Mestrado em Química em sistemas de liberação controlada de fármacos (Drug delivery system) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Representante do Conselho Federal de Odontologia (CFO) no Comitê Nacional para Promoção do Uso Racional de Medicamentos do Ministério da Saúde (MS)2013-2014. Presidente do Conselho Regional de Odontologia do Rio Grande do Norte (CRO-RN). Professor de Farmacologia Aplicada à Odontologia da Escola de Aperfeiçoamento Profissional (EAP) da Associação Brasileira de Odontologia-Seção RN.

Disponível em: http://www.cntu.org.br/cntu/artigos/prescricao-racional-de-medicamentos-em-odontologia

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