Título original: Para Propaganda Falsa tem Remédio
Por Debora Melecchi, Maria Eugênia Carvalhaes Cury, Maria Eufrásia de Oliveira Lima, Ronald Ferreira dos Santos e Alice Portugal
A recente manifestação de membros da CPI da Covid sobre possível pedido de indiciamento do presidente da República por curandeirismo e charlatanismo devido à sua reiterada defesa do uso de remédios comprovadamente ineficazes para tratar a doença reacende o debate sobre a propaganda de medicamentos no Brasil.
Aliás, o
depoimento de Jailson Batista, diretor da farmacêutica Vitamedic, à CPI na
quarta-feira passada, 11/08, só fortalece a necessidade de se ampliar essa
discussão junto à sociedade.
A Vitamedic é uma
das principais produtoras de ivermectina no Brasil.
Jailson admitiu
que a empresa patrocinou a publicação de um informe publicitário da associação Médicos
pela Vida, defendendo o tratamento precoce, conhecido
como “kit covid”, que incluía o antiparasitário ivermectina, que é ineficaz
contra a covid019.
Vitamedic pagou
R$ 717 mil por essa propaganda veiculada em jornais de grande circulação
no País.
Em plena crise
sanitária, social e econômica, nos vemos diante de um projeto político nacional
que atua intencionalmente contra as vidas.
O incentivo ao
uso incorreto de medicamentos contra a covid-19 se traduziu em: aumento da
produção de cloroquina; nota do Ministério da Saúde orientando o seu uso;
propaganda por parte do presidente da República; e ausência de campanhas
esclarecedoras sobre os riscos da automedicação.
Embora a
propaganda de medicamentos no Brasil seja lícita, é uma atividade sujeita a
regras específicas, conforme previsto na Constituição Federal em seu art. 220 –
parágrafo 4º.
Afinal, os medicamentos
não são bens de consumo comuns, mas, sim, bens de saúde, fundamentais para o
tratamento de doenças e prevenção de agravos, como as vacinas.
O Estado
brasileiro, ao regular a propaganda de medicamentos, exerce a sua função de
mediador de assimetrias de informação e de interesses entre a indústria
farmacêutica e os consumidores.
O direito à
liberdade e à livre iniciativa da indústria de divulgar informações sobre os
seus produtos não pode estar acima da garantia à população do seu direito à
saúde, expresso na redução de riscos no uso inadequado de medicamentos.
A obra
“Vendendo Saúde: A História da Propaganda de Medicamentos no Brasil”, de
Eduardo Bueno e Paula Taitelbaum, editada pela Anvisa em 2008, traz uma
importante análise sobre o direito à saúde expresso no contexto de Estado
social em que se enquadra a Constituição de 1988, onde é possível perceber que
a saúde está vinculada a vários outros temas e, por isto, transcende ao
expresso na seção da saúde da Constituição (no artigo 196).
Assim, para
interpretar a proteção à saúde é necessário atentar para todo o contexto
constitucional.
Essa análise nos leva à
reflexão de que o direito à “dignidade da pessoa humana”, expresso no artigo
primeiro da Constituição Federal, tem primazia e orienta os demais valores
sociais do trabalho, da livre iniciativa, dos direitos individuais e da ordem
econômica.
Por isso, o que
temos acompanhado em relação à propaganda de medicamentos comprovadamente
ineficazes contra a covid-19 atenta contra a saúde e à dignidade das pessoas.
Caracteriza-se
como propaganda abusiva, na medida em que explora o medo em relação à pandemia
e induz as pessoas a se comportarem de forma prejudicial ou perigosa à sua
saúde.
Também trata-se
de propaganda enganosa, quando emite informação falsa e induz o consumidor ao
erro de se achar protegido do vírus e abandonar os cuidados de proteção,
expondo-se à infecção.
A constatação
dos riscos relacionados ao uso inadequado de medicamentos pode ser observada
pelos dados do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox)
que demonstram que os medicamentos ocupam o primeiro lugar entre os agentes
causadores de intoxicações e o segundo nos registros de morte por intoxicação.
No ano de 2016
foram notificados 32.311 casos de intoxicação por medicamentos, correspondendo
a 33,17% do total de todos os registros.
A luta pela
promoção do Uso Racional de Medicamentos passa, também, pela atenção às
práticas relacionadas à propaganda desses produtos.
A Resolução
RDC/ ANVISA n°96/2008 define propaganda como o conjunto de técnicas utilizadas
com objetivo de divulgar conhecimentos e/ou promover adesão a princípios,
idéias ou teorias, visando exercer influência sobre o público através de ações
que objetivem promover determinado medicamento com fins comerciais, exercendo
impacto nas práticas terapêuticas e no comportamento das pessoas em relação ao
uso.
Segundo a
página do CEE-Fiocruz, em matéria publicada em agosto de 2017, a “Exposição a
medicamentos sem eficácia comprovada, risco de submissão a tratamentos
inadequados, suscetibilidade a efeitos colaterais e ao agravamento de quadros
clínicos são possibilidades criadas pela preponderância do viés publicitário e
mercadológico no cuidado com a saúde”.
A preocupação
com os malefícios da propaganda de medicamentos no Brasil tem sido uma pauta
central dos farmacêuticos e farmacêuticas por meio da atuação da Federação
Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar).
Em 2005, a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Federação Nacional de
Farmacêuticos (Fenafar) e a Federação Nacional dos Médicos (Fenam) fizeram uma
parceria com o objetivo de reduzir os efeitos do mau uso de medicamentos.
Assim,
iniciaram uma ação conjunta para coibir a propaganda de medicamentos, que
resultou na realização de quatro seminários regionais e no Seminário Nacional
Sobre Propaganda e Uso Racional de Medicamentos. O seminário nacional
aprofundou o debate sobre medidas para proibir a propaganda de medicamentos nos
meios de comunicação e regular a divulgação de folhetos promocionais. Também na
formulação de um plano de ação nacional para a inserção do Uso Racional de
Medicamentos nas práticas dos profissionais prescritores e dispensadores, e que
ganhou materialidade em uma série de processos no setor público e privado que
envolvem o uso de medicamentos.
Nesses
processos, os papéis dos profissionais de saúde, gestores, prestadores de
serviço e meios de comunicação são estratégicos para a promoção do uso racional
de medicamentos ao cumprir o seu fazer, no atendimento às necessidades e bem
estar das pessoas.
O SUS
estabeleceu a Saúde como direito, e com o advento da Política Nacional de
Assistência Farmacêutica (PNAF), em 2004, o medicamento passou a ser um insumo
garantidor desse direito.
Assim, mais do
que responsabilizar criminalmente aqueles que buscam lucrar ou beneficiar-se
politicamente de forma vil, inescrupulosa e negacionista da demanda por um
“remédio” para a covid-19, a sociedade brasileira precisa reforçar os
mecanismos que a protegem da tirania na política e da ganância do mercado, que
desconsideram e desprezam as necessidades e bem estar das pessoas, a ciência e
a vida, que passa pelo fortalecimento do SUS e a submissão dos setores
complementares e suplementares, na sua regulação e planejamento, incluindo a
farmácia, que a partir de 2014, passou à condição de uma unidade de prestação
de serviços destinada a prestar assistência farmacêutica, assistência à saúde e
orientação sanitária individual e coletiva.
Formulações
acerca do uso racional de medicamentos estão sendo oferecidas à sociedade
brasileira quase ao mesmo tempo das formulações das diretrizes assistenciais e
gerenciais de como garantir o funcionamento do SUS, público, universal e
integral.
É necessário
reunir forças técnicas e políticas para que as diferentes atividades econômicas
da saúde atendam de fato ao interesse público e não a manutenção ou ampliação
de poderes e lucros.
E
definitivamente não é apenas discurso, mas inúmeras iniciativas, se já
implementadas, poderiam ter evitado as nefastas consequências ao povo brasileiro.
A CPI do Senado
tem evidenciado essa questão que se traduz na necessidade de concretizar ações,
tais como:
—
desenvolvimento de campanhas de conscientização da população e ação conjunta
dos gestores públicos para utilização dos seus órgãos de comunicação para a
promoção do uso racional de medicamentos;
— estímulo à
aproximação das categorias de prescritores e dispensadores;
— conduta
médica, farmacêutica e da equipe de saúde baseada nos princípios da ética, da
saúde e em evidências;
— ação do parlamento
com projetos de lei que fortaleçam a Assistência Farmacêutica como direito;
— retomada de
debates amplos sobre a propaganda de medicamentos, com a participação do
controle social do SUS.
Fundamental
seguirmos somando forças e amplitude para que se tenha garantida o direito dos
cidadãos à assistência farmacêutica e o respeito ao uso racional de
medicamentos como instrumento essencial no contrapondo à má publicidade de
medicamentos e remédios e na defesa das vidas, da ciência e da democracia.
*Debora Raymundo Melecchi é farmacêutica,
presidenta do Sindicato dos Farmacêuticos do Rio Grande do Sul, diretora da
Federação Nacional dos Farmacêuticos e Conselheira Nacional de Saúde
*Maria Eugênia Carvalhaes Cury é farmacêutica, mestre em Educação pela Unicamp
* Maria Eufrásia de Oliveira Lima é tecnóloga de
Administração em Recursos Humanos, assessora aindical na Federação Nacional dos
Farmacêuticos
*Ronald Ferreira dos Santos é farmacêutico,
mestre em Saúde Pública pela UFSC, presidente da Federação Nacional dos
Farmacêuticos
*Alice Portugal é farmacêutica, deputada federal
PCdoB-BA