Extraído do Jornal GGN
Por
LILIAN MILENA
Autor do conceito “complexo econômico-industrial da saúde”, implementado na política nacional de desenvolvimento entre 2003 e 2015, chama a atenção para a necessidade da gestão pública considerar a saúde como uma alavanca decisiva para o Brasil sair da crise.
Brasilianas - Afirmar que a Saúde é um setor que “não cabe no PIB”, ou avaliá-lo como um gasto que precisa ser contido pelo Estado é uma visão bastante limitada e precisa ser desmontada, defende o economista e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Carlos Grabois Gadelha, na entrevista à seguir, para o portal Região e Redes. Gadelha destaca que 35% das atividades produtivas, tecnológicas, de pesquisa e inovação ocorrem no campo da saúde que representa 10% PIB brasileiro, peso maior do que o da indústria manufatureira. Em 2016, por exemplo, a área movimentou R$ 600 bilhões na economia brasileira. Além disso, emprega 12 milhões de trabalhadores qualificados.
"A saúde, ao mesmo tempo que constitui um direito básico de cidadania, uma conquista civilizatória que o Brasil teve e que culminou na Constituição de 1988, também mobiliza um grande complexo produtivo de inovação, que é dos mais importantes para o país”, pontua o pesquisador.
Gadelha é autor do conceito “complexo econômico-industrial da saúde”, implementado na política nacional de desenvolvimento entre 2003 e 2015, e chama a atenção nesta entrevista para a necessidade da gestão pública considerar a saúde como uma alavanca decisiva para o Brasil sair da crise.
"A conformação e a organização do Estado na área de desenvolvimento industrial e tecnológica devem ser pautadas pelos grandes desafios sociais. Então, em vez de ser política industrial automobilística, é política industrial de inovação para mobilidade. Em vez de ser política industrial para farmacêutica, é política industrial de inovação para a saúde. Em vez de ser política industrial para petróleo e gás, é política industrial para matriz energética do futuro, que inclui petróleo e gás, mas também as demais várias matrizes energéticas", explica. Acompanhe a seguir a entrevista completa.
O Sistema Único de Saúde (SUS) representa um dos principais desafios da política pública brasileira. Desde a sua criação, há 29 anos, sofre com insuficiência de recursos financeiros, humanos e tecnológicos. Nos últimos anos, o que sempre foi conhecido por subfinanciamento da área de saúde tem evoluído para um desfinanciamento que põe em risco parte das conquistas e avanços trazidos à sociedade brasileira. Um dos principais orçamentos dos governos federal, estaduais e municipais, os gastos com saúde são elegíveis aos cortes que gestores públicos vêm como única alternativa para tirar o Brasil da situação de crise.
Na visão do economista e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Carlos Grabois Gadelha, o sistema de saúde brasileiro precisa ser visto como algo maior que sua capacidade de assistência aos cidadãos. É preciso um olhar diferente e integrado sobre o potencial da área da saúde para promover desenvolvimento e trazer qualidade de vida. Com atividades produtivas, tecnológicas, de pesquisa e de inovação que mobilizam 10% do PIB e empregam cerca de 12 milhões de trabalhadores qualificados, a saúde no Brasil apresenta capacidade de gerar empregos e renda e carrega uma oportunidade ímpar de investimentos em ciência, tecnologia e inovação que podem ajudar o Brasil a acender a luz que guiará o país ao longo das próximas décadas.
E não é apenas a saúde. Segundo Gadelha, a mobilidade urbana truncada, o desenvolvimento energético e a garantia de segurança alimentar para a população brasileira compõem alguns dos itens que devem ser abordados com uma visão integrada entre sistema produtivo e políticas públicas de melhoria da qualidade de vida. Esses setores, junto com o da saúde, podem ser a grande alavanca para tirar o Brasil da crise e ajudar a construir um novo modelo de desenvolvimento, que atenda as necessidades mais urgentes e complexas do país. Principalmente agora que os setores da construção civil e de petróleo e gás estão paralisados ou desmontados. Apesar de o país estar diante de um cenário econômico, social e político incerto e com a política de cortes vigendo, parece utópico pensar nessas alternativas. Mas conhecer as possibilidades é fundamental para ajudar o país a pensar novos caminhos para o futuro.
Região e Redes: Quando se fala em Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS), do que exatamente estamos falando?
Carlos Gadelha: Essa noção do Complexo Econômico Industrial da Saúde, foi desenvolvida no início dos anos 2000, a partir dos grandes estudos de competitividade do Instituto de Economia da Unicamp e do Instituto de Economia da UFRJ. A proposta era dar um passo além das políticas meramente setoriais para estabelecer políticas e visões que tivessem uma articulação de grandes sistemas produtivos de inovação, e a saúde é um grande sistema político de inovação que depois foi assumido como prioridade na política governamental.
A saúde, ao mesmo tempo que constitui um direito básico de cidadania, uma conquista civilizatória que o Brasil teve e que culminou na Constituição de 1988, também mobiliza um grande complexo produtivo de inovação, que é dos mais importantes para o país. Só para você ter alguma ordem de grandeza, se eu pensar a saúde como sistema integrado, produtivo e articulado, e não apenas como um fragmento de setores de medicamentos e de vacina, a saúde mobiliza 10% do PIB. Se eu pegar o PIB do ano passado, que está na faixa dos R$ 6 trilhões, a saúde mobiliza cerca de R$ 600 bilhões na economia brasileira. O peso da saúde é maior que todo o peso da indústria manufatureira no PIB.
As atividades produtivas, tecnológicas, de pesquisa e de inovação em saúde mobilizam cerca de 12 milhões de trabalhadores qualificados, ou seja, tem tudo a ver com a sociedade do conhecimento. Aqui no Brasil, 35% das pesquisas são feitas no campo da saúde ou de áreas muito próximas, como das ciências biológicas e biomédicas.
RR: Não é possível fazer políticas sociais e políticas de desenvolvimento e de inovação de modo desarticulado…
CG: Os economistas compartilham da ideia de que política industrial é importante, mas às vezes se perde um pouco o elo de que a política social e a infraestrutura produtiva e econômica são interdependentes. Se há setores que são mais intensivos em tecnologia, que têm maior capacidade de atender demandas sociais e que mobilizam empregos qualificados, a base econômica e tecnológica do país está associada a um certo modelo de sociedade.
Então, quando elegemos e selecionamos o complexo da saúde como uma grande aposta de longo prazo da política nacional, a gente está simultaneamente atuando na dimensão econômica da geração de produção, emprego, renda, inovação, e na dimensão social. Há uma grande aposta, uma grande perspectiva, de que nós não podemos ter sistemas universais no campo da saúde, e isso vale também para educação e para outras áreas. Mas se não tivermos um sistema produtivo forte que ancore as políticas sociais, não há condição de conformar o estado de bem-estar no Brasil.
Essa é a grande perspectiva e que foi assumida como política pública, causando verdadeira transformação do ponto de vista dos instrumentos de política pública. A partir de 2008, quando foi lançada a política de desenvolvimento produtivo (PDP), se colocou o complexo industrial da saúde como uma das cinco prioridades da política industrial brasileira. Com o apoio do BNDES, o primeiro objetivo foi reduzir a vulnerabilidade do SUS. De outro lado, o Mistério da Saúde criou uma política de desenvolvimento produtivo para usar o poder de compra do Estado para internalizar a capacidade de produção e de inovação no Brasil.
Ou seja, uma clara articulação impensável nos anos 1970 e 1980, quando se falava que a melhor política industrial era não ter uma política industrial. A retomada da política industrial toma o campo da saúde como um campo de interação. Instituições de desenvolvimento econômico, como o BNDES, e instituições clássicas de desenvolvimento social, como o Ministério da Saúde, começam a dialogar e a fazer políticas articuladas. O Ministério da Saúde usando seu poder de compra e o BNDES financiando projetos industriais e de inovação no Brasil.
RR: A lógica de um sistema e não de um setor…
CG: Na verdade, quando você faz qualquer programa, por exemplo, um programa de atenção em câncer, simultaneamente mobilizam-se equipamentos de radioterapia, produtos farmacêuticos biotecnológicos e atua-se na ponta, com hospitais que têm que ter alta complexidade de conhecimento e tecnologia tanto para o tratamento em câncer quanto para as pesquisas clínicas em câncer. Eu peguei o exemplo do câncer, mas podia ser de uma vacina contra dengue. Trabalha-se no desenvolvimento da vacina, no diagnóstico, em materiais que possam ser usados no controle da dengue, trabalha-se no controle de vetores e mosquitos e é preciso mobilizar os serviços em saúde para disseminar os produtos, as tecnologias e os conhecimentos, inclusive na área de saneamento que tem a ver com a dengue. Então, quando eu trabalho por problema eu não posso ser setorial. A saúde é o problema e não, individualmente, os setores que a compõe. Isso é uma reflexão. Em vez de o problema ser a indústria farmacêutica (como é que eu produzo cada vez mais medicamento?), meu problema é a saúde. Talvez para algumas doenças ou algumas questões de saúde pública a abordagem não seja mais medicamento e sim saneamento, ou ter vacinas que vão prescindir de medicamentos.
É o mesmo que, em vez de eu fazer política automobilística, eu devo fazer política para a mobilidade. Ou nosso objetivo é ter cada vez mais cidades mais entupidas de carro? E, ao mesmo tempo, quando tenho política de mobilidade eu estou abrindo oportunidades de investimento, de geração de renda e emprego, de oportunidade de lucro, mas pautado numa dimensão social do padrão de desenvolvimento. No campo da energia poderia dizer: se eu estou mudando a minha matriz energética para uma matriz de energia limpa, por exemplo, energia solar e energia eólica, estou abrindo oportunidade de investimento, mas estou pensando numa sociedade que tem de ser mais ambientalmente sustentável e com melhor qualidade de vida.
RR: Isso não se faz sem Estado forte e planejamento de longo prazo…
CG: Se eu pensar em Coreia, Japão, Alemanha, EUA, China, todos tiveram uma participação ativa do Estado e uma articulação virtuosa entre Estado e setor privado. No Brasil só começamos e estamos engatinhando. Então, isso começa a partir dos anos 2000. Essas políticas são políticas para 20 ou 30 anos ou é melhor nem fazer. Porque são políticas estruturantes sobre o sistema produtivo. A nossa capacidade de inovação, a capacidade de desenvolver tecnologias de fronteira, a capacidade de articular o sistema industrial com o sistema de serviço, todas são apostas que estão no estágio inicial. Longe de ter concluído o trabalho. O trabalho foi apenas iniciado e demanda, sim, um aprofundamento dessas políticas.
RR: O senhor disse que não dá para garantir um direito universal se não houver um sistema produtivo forte. Como essas políticas industriais e de inovação podem ajudar a dar sustentação ao SUS?
CG: Eu acho que existe hoje uma visão mesquinha e medíocre do ajustamento recessivo. Temos baixo grau de crescimento, finanças públicas quebradas e estamos entrando no círculo vicioso, e não virtuoso, de corte nos gastos sociais e nos direitos. Um olhar mesquinho sobre o desenvolvimento em que, para obter o ajuste, eu limito e corto os gastos sociais e as condições de bem-estar da população. Ao invés de isso permitir que eu saia da crise, isso aprofunda a crise.
Ou seja, o sistema de bem-estar social é um multiplicador de renda que se aproxima de dois, ou seja, cada gasto social gera o dobro de renda e emprego. Mas se eu pegar a dimensão tecnológica, a saúde e a educação, o sistema de bem-estar social representa 50% da capacidade de inovação e de pesquisa do país. Quer dizer, se olharmos o gasto social com esses óculos eu saio da visão míope de ver isso apenas como gasto.
Quando falo de gasto estou falando em uma população mais saudável. Estamos falando em gastos que vão gerar empregos de alta qualidade, são empregos formais. Dos setores que mais empregam trabalho formal no país, um é a área de saúde. E ao mesmo tempo estou falando de abrir mercados para toda a pesquisa brasileira, ou seja, 35% da pesquisa brasileira ficam sem mercado. Isso não faz sentido algum! É desperdiçar uma oportunidade histórica, porque temos o Sistema Único de Saúde e temos uma base de pesquisa e um olhar medíocre sobre as possibilidades dessa política para alavancar o desenvolvimento.
Na verdade, temos dois modelos de ajuste: um que crescentemente vai-se cortando mais e mais e vai-se quebrando os horizontes de crescimento futuro; e outro, um modelo virtuoso, em que você pode tratar o sistema de bem-estar social, mais do que apenas a saúde, como alavanca que gera inovação, imposto, emprego e renda. Um país só atinge as condições de ser mais equânime e mais desenvolvido se tem uma base produtiva qualificada e diversificada. O país que tem uma base produtiva pobre, baseada em produtos primários exportadores, é um país que terá uma péssima distribuição de renda e não terá um estado social.
RR: Estamos mergulhados em crises, sem alternativas nem perspectivas interessantes. Que modelo de país é preciso para fazer avançar essa perspectiva?
CG: Esse é o centro da questão. Eu acho que preside qualquer discussão sobre ajuste macroeconômico, sobre gasto social, sobre política de ciência e tecnologia. É uma premissa que a gente coloque na mesa qual é o modelo de sociedade pretendido pelos brasileiros.
O Brasil soube, em momentos graves de crise, como foram os anos 1930 e os anos 1950, que não podemos entrar na depressão econômica, porque isto é ficarmos passivos frente à crise, e é momento de formulação estratégica de projetos de desenvolvimento. Então, temos como modelo de sociedade um país que seja justo, inclusivo.
A Europa monta seu Estado de bem-estar no pós-guerra, depois da experiência terrível da barbárie nazista, quando se falou: “olha, nós temos que ter uma sociedade pautada por princípios gerais que estão na Declaração dos Direitos Humanos, orientada por princípios gerais de cidadania, de direitos, de direitos sociais como premissa”. O modelo de sociedade e os direitos sociais devem presidir todas as políticas públicas, inclusive as políticas industrial e tecnológica. A conformação e a organização do Estado na área de desenvolvimento industrial e tecnológica devem ser pautadas pelos grandes desafios sociais. Então, em vez de ser política industrial automobilística, é política industrial de inovação para mobilidade. Em vez de ser política industrial para farmacêutica, é política industrial de inovação para a saúde. Em vez de ser política industrial para petróleo e gás, é política industrial para matriz energética do futuro, que inclui petróleo e gás, mas também as demais várias matrizes energéticas. Em vez de eu ter uma política específica, por exemplo, de infraestrutura urbana, eu tenho que criar políticas com cidades saudáveis e cidades inteligentes em uma agenda de desenvolvimento e inclusão. Não é ter cidades inteligentes em alguns bairros cercados por favelas que não têm acesso sequer a condições mínimas de saneamento. A política para agroindústria, é política para alimentos, que envolvem aspectos de segurança alimentar. As demandas e os desafios desta sociedade têm que anteceder a política industrial e a política de inovação.
Todo o sistema de ciência e tecnologia montado depois dos anos 1950 é forte no Brasil. Alguns sistemas de bem-estar têm muitas falhas, mas como o SUS foram constituídos nesse Brasil e são patrimônios do povo brasileiro. Só que tudo isso está em pleno processo de construção. Enquanto nos países europeus foi preciso uma guerra que matou 50 milhões de pessoas para se criar o estado de bem-estar, e isso foi construído nos 30 anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, a gente corre o risco de matar o nosso incipiente sistema de bem-estar no momento que precisávamos avançar incorporando a dimensão tecnológica e industrial. Não podemos tratar a política social como política compensatória.
RR: Quem hoje representa e faz esse debate com essa clareza no Brasil?
CG: Temos que retornar às energias utópicas. Nos anos 1980 falava-se em energias utópicas, a utopia não é algo descolado da realidade. Hoje temos uma desmobilização da sociedade brasileira porque estamos sem projeto de futuro.
Temos uma série de instituições, e o próprio sistema universitário, que está sendo tensionado a mostrar respostas para a sociedade. Eu participo da principal instituição de ciência e tecnologia em saúde do Brasil, a Fiocruz. Ao mesmo tempo que é uma instituição essencial para a formação do SUS, é a maior instituição de biotecnologia do país e é uma instituição do SUS.
Se dissermos na rua “olha, eu tenho tecnologia para viabilizar o acesso público, para reduzir a dengue, ou para prevenir e tratar o câncer”, eu garanto que o apoio social virá com grande ênfase. Mas se dissermos que o sistema tecnológico está apenas a serviço da competitividade, isso não tem apelo social nenhum.
Também temos que estabelecer o diálogo com a política e com a sociedade, colocando a agenda do desenvolvimento a serviço da agenda social. Eu duvido que a questão da mobilidade urbana e das tecnologias da mobilidade não se tornem prioridade se a gente souber esclarecer a população devidamente. Hoje um trabalhador leva cinco horas do seu dia de trabalho para chegar ao trabalho e voltar para casa em condições precárias de transporte e de segurança e de violência. Há uma falta de entendimento e clareza dos formuladores de políticas públicas e da nossa própria intelectualidade em estabelecer esse diálogo. A população sabe onde o sapato aperta. Se você falar de mobilidade, do custo da energia para as famílias, se você falar de alimentos, se você falar de saúde, as pessoas entendem. Agora se falar os termos técnicos, que atendam apenas à lógica da competitividade e do desenvolvimento de algumas empresas, as pessoas não vão querem entender, e com muita razão.
É óbvio que estamos em um período triste do país, mas temos que sair dessa tristeza para reavivar um diálogo com a sociedade, em que política de desenvolvimento comece a ter uma interlocução com os problemas reais das pessoas. Nós somos um dos países mais desiguais do mundo, do ponto de vista da distribuição de renda e do ponto de vista regional. Por exemplo, o desenvolvimento regional brasileiro, ou a desigualdade regional, não ocorre apenas entre as macrorregiões.
Dentro do Amazonas, 90% do PIB está na região metropolitana de Manaus. Isto é um grande problema?. Sim, é um grande problema, mas também uma grande oportunidade. Um estado com aquela biodiversidade é capaz de criar um projeto de desenvolvimento que não seja tão concentrado numa região metropolitana. Isso vale para diversas regiões do país. Se eu pego São Paulo, tem o Vale da Ribeira. Se eu pego Minas Gerais tem o Vale do Jequitinhonha. Na verdade, é preciso fazer uma inversão nessa perspectiva que eu chamo de medíocre e míope, que vê o brasileiro como problema quando na verdade deveria ser visto como oportunidade de expansão. Rigorosamente, inovação são novos campos de oportunidade de investimento. Quando se abrem novos espaços econômicos, se faz inovação. É preciso produzir em territórios onde não há uma capacidade produtiva e uma população excluída.
Temos que oferecer ao cidadão brasileiro uma proposta que atenda as suas necessidades. Não é uma proposta de distribuição da miséria e da escassez, é uma proposta que aponta para um horizonte dinâmico de futuro.
RR: Como estão estruturadas as políticas de desenvolvimento no Brasil? Existe alguma articulação em curso ou estamos à deriva?
CG: Considero que nós estamos em um momento de risco. Como eu disse, o que foi feito no período recente tem que ser visto como iniciativa incipiente de colocar a dimensão social e a dimensão industrial e tecnológica na prioridade da agenda, mas longe de ter consolidado isto para o futuro. A nossa tarefa seria essa agora. A gente está no meio da crise e a capacidade de articulação das instituições e do próprio Estado, inclusive com o setor privado em torno de um projeto, está fragilizada. Existe uma base produtiva de inovação e de bem-estar que precisa ser articulada. Mas estamos em um momento de crise e de ataque aos três pilares de um novo projeto de desenvolvimento, o pilar da produção, o pilar da inovação e o pilar do bem-estar.
Quando temos o orçamento de ciência e tecnologia reduzido pela metade, um horizonte de congelamento dos gastos sociais por 20 anos e uma desqualificação da política industrial percebemos que estão sob ataque os três pilares centrais de uma estratégia central de desenvolvimento.
Estamos num ponto de inflexão. E aí eu acho que a história tem muito de reversibilidade. No momento que estamos entrando na quarta revolução tecnológica, na interconectividade, no uso da big size, no grande uso de dados, no big data, tudo isso impacta na área social, na educação. A saúde pública do futuro vai ser baseada no big data, na interconectividade, nas tecnologias de informação que permitem organizar um sistema universal de saúde. Ou seja, no momento em que alguns países entram na revolução tecnológica, se a gente ficar estagnado talvez percamos uma janela histórica na oportunidade do desenvolvimento. Acredito que ou entramos na quarta revolução tecnológica em curso, ou correremos o risco de ficar, definitivamente, na armadilha do subdesenvolvimento, sendo apenas mercado consumidor de produtos, serviços e tecnologias gerados em poucos países desenvolvidos.
RR: Nessa discussão de bem estar, cidadania e desenvolvimento, como tem aparecido a questão do enfrentamento das desigualdades regionais? O planejamento regional está contemplado nessa discussão?
CG: Sim, existem algumas ideias importantes nisso. Primeiro, o desenvolvimento regional, mais uma vez, abre espaço de crescimento. Num período recente, os estados da região Nordeste foram os que tiveram melhor desempenho da economia brasileira. Então, acho que do ponto de vista global vale para dentro do Brasil. Isso é outro esforço que os intelectuais devem fazer, ou seja, se a gente quer fazer desenvolvimento regional para valer, a sociedade do conhecimento, as novas tecnologias tem que estar… por exemplo, a gente não pode só fazer telemedicina em grandes centros, como Rio e São Paulo, onde o conhecimento é gerado. Desse modo, os estados da região Norte e Nordeste viram apenas consumidores e estaremos reproduzindo a lógica do subdesenvolvimento para dentro do país, como aliás vem sendo reproduzido historicamente.
Vou dar um exemplo: hoje um dos estados que está conseguindo avançar no complexo industrial da saúde é o Ceará, que montou um parque tecnológico onde a Fiocruz está presente com produtos de biotecnologia de última geração. E isso foi motivado não por uma análise estática de custo-benefício, mas por uma análise dinâmica pautada por um projeto nacional, em que essas áreas são as novas fronteiras de crescimento. O que hoje parece deficiente, amanhã pode ser oportunidade de geração de emprego e renda. Há um certo esgotamento das grandes metrópoles e quando se chega em regiões novas para começar um processo de desenvolvimento criam-se círculos virtuosos de abertura de novos espaços econômicos. Onde não havia coisa alguma começa a existir mobilidade de pessoas, mobilidade de conhecimento, pessoas que se formam no sistema universitário e param de migrar para o Sudeste. Ficam lá no Norte, no Nordeste.
Essa visão de bem-estar inclui a dimensão da desigualdade social e dos direitos sociais, a dimensão da desigualdade regional e a dimensão da sustentabilidade ambiental. Eu acho que isso também é importante dizer. Não dá mais para as políticas de desenvolvimento do século XXI não terem avaliado a sustentabilidade ambiental. Como eu cobro da sociedade uma agenda do desenvolvimento sustentável se eu não coloco para a sociedade que isto pode gerar renda, emprego, melhor qualidade de vida?
RR: O senhor enfatizou a questão da sociedade e da democracia para além do debate técnico e burocrático. Como incluir a sociedade nessa discussão?
CG: Acredito que os modelos pretéritos de desenvolvimento precisam ser repensados, mas também acho que a própria democracia e as formas de participação democráticas precisam ser repensadas. Acho que os instrumentos de mobilização e comunicação democrática precisam ser repensados. Hoje a gente tem as redes sociais, temos as tecnologias de comunicação e informação. Não é verdade que os jovens são desinteressados. Mais uma vez: não estamos conseguindo fazer o diálogo com a juventude e o risco é que essa energia da juventude se disperse. Então, eu acho que essa radicalização da agenda de desenvolvimento também envolve uma radicalização da democracia. É dar voz para as pessoas em participações em fóruns locais. Por exemplo, eu acho que seria uma tragédia o parlamentarismo hoje porque ele afasta mais ainda a sociedade de uma participação nos rumos estratégicos do país.
Há um desencanto global com a próprias formas de participação democrática. A participação nas eleições em diversos países está declinando fortemente. A gente pode citar a França, a Inglaterra, os EUA e outros países. Essa discussão de modelo de sociedade e projeto de desenvolvimento precisa contemplar isso. É preciso diálogo dos intelectuais com a sociedade. Ficamos todos conversando em redes fechadas de Whatsapp e não estamos conseguindo utilizar os novos recursos tecnológicos e as novas formas de organização da própria sociedade. É absolutamente crucial.
Um projeto de desenvolvimento inclusivo para a sociedade se faz com a sociedade. Não é uma elite intelectual trancada em um gabinete que vai fazer o projeto de desenvolvimento colado às demandas sociais. Demanda quem faz é a sociedade, numa articulação em que os intelectuais e a burocracia pública têm o papel central de estabelecer esses canais de esclarecimento, de informação e de diálogo.
Extraído de: https://jornalggn.com.br/noticia/a-saude-e-alavanca-para-sair-da-crise-defende-carlos-gadelha