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segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Farmacêutica diz: Plano de saúde popular é uma afronta à Constituição!

A proposta de se ter planos populares de saúde acessíveis é contrária ao SUS e uma afronta à Constituição Federal que diz que é um dever do Estado e direito de todo o cidadão ter acesso à saúde. Os únicos beneficiados com a proposta são os planos de saúde que acharam essa saída para recuperar clientes que foram perdidos, nos últimos anos, em função da crise.

 Contudo, esses planos para serem mais baratos vão oferecer muito menos que os convencionais. Já existe toda uma crítica sobre o que os planos convencionais realmente oferecem ou sobre a demora que levam para prestar atendimento. A população critica a qualidade dos serviços que os planos têm oferecido. Provável que esses planos populares ofereçam ainda menos serviços com qualidade pior.
Reforçamos assim a luta que sempre defendemos de que precisamos ter mais dinheiro para a saúde. A ideia do ministro interino da saúde de que precisamos reduzir o atendimento porque não tem financiamento é inadmissível. Sabemos que recursos existem só que não estão sendo alocados para a saúde, e sim, para pagamentos da dívida, sem contar os recursos desviados. Precisamos, cada vez mais, lutar para conseguir os recursos necessários para a saúde e também qualificar mais a gestão para que se utilize melhor os recursos que se dispõe.
O SUS precisa de recursos suficientes e uma gestão adequada para poder atender bem a população e cumprir com o que a Constituição preconiza.
Célia Chaves é tesoureira da Fenafar, presidenta do Conselho Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, e diretora do Sindifars.
Fonte: http://fenafar.org.br/index.php/2016-01-26-09-32-20/saude/1064-plano-de-saude-popular-e-uma-afronta-a-constituicao

terça-feira, 9 de agosto de 2016

REDE UNIDA se manifesta contra "Plano de Saúde Acessível".

Título Original: REDE se manifesta contra a proposta do MS de criação do chamado "plano de saúde acessível"



Para a Associação Brasileira da Rede Unida, a medida é um ataque às políticas de proteção social e tem a intenção de promover o sucateamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e forçar que os cidadãos brasileiros contratem planos precários. Leia a nota na íntegra.

 A SAÚDE É PARA TODOS: A FAVOR DO SUS UNIVERSAL E GRATUITO E CONTRA OS PLANOS PRECÁRIOS

O Ministério da Saúde instituiu no dia 5 de agosto/2016 Grupo de Trabalho para formular uma proposta de criação de “plano de saúde acessível”. Tais planos têm sofrido a crítica e resistência de amplos setores da sociedade por restringirem a cobertura e precarizarem o cuidado à saúde, deixando os usuários vulneráveis e desprotegidos.
Trata-se de um retrocesso ao que a própria Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) propõe como os procedimentos mínimos que cada plano é obrigado a garantir a seus beneficiários. O resultado seria um plano, possivelmente, com um custo um pouco menor, mas que não garantiria procedimentos de saúde essenciais num momento de necessidade da pessoa.
Assim, o objetivo dessa medida é garantir mais lucros e beneficiar os empresários de um setor que no último ano já movimentou 180 bilhões de reais.
Esta iniciativa surge após o governo interino apresentar a PEC 241/2016 e a Lei Orçamentária para 2017 que congelam os recursos da saúde para os próximos 20 anos, o que na prática vai reduzir o já insuficiente financiamento do SUS que resultará em fechamento de serviços, demissões de profissionais e perda de direitos conquistados.
Este ataque às políticas de proteção social tem a intenção de promover um sucateamento do Sistema Único de Saúde, reduzir sua capacidade de atendimento e qualidade, forçar as pessoas a contratarem planos precários e aponta para a ideia de “menos SUS e mais planos de saúde”. Na prática, as pessoas seriam obrigadas a pagar por serviços de que já dispõem gratuitamente no SUS. Com isto a população vai perdendo o que tem sido a maior política de inclusão social, conquistada no período pós redemocratização do país.
A Rede Unida defende radicalmente o direito universal e gratuito à saúde. Efetivar este princípio do SUS é parte da construção de um país pautado pela solidariedade, pela proteção social e pelo cuidado à sua população. Isto passa pelo fortalecimento do Sistema Único de Saúde, por meio de ações afirmativas da universalização do acesso, orientação da formação de profissionais da saúde implicada com o cuidado e práticas humanizadas, fortalecimento da participação social, entre outras.
É urgente lutar contra a PEC 241/2016, a LDO 2017 e a proposta de plano precários. Nos juntamos a todas e todos que lutam pelo SUS - como um sistema de saúde verdadeiramente universal, gratuito e em permanente melhoria para atender com qualidade as necessidades de saúde de nossa população - e contra os ataques sistemáticos que o direito à saúde vem sofrendo pelo atual governo provisório.
Agosto de 2016.
Rede Unida

Fonte: http://www.redeunida.org.br/noticia/rede-se-manifesta-contra-a-proposta-do-ms-de-criacao-do-chamado-plano-de-saude-acessivel

Sociedade Brasileira de Pediatra critica "planos populares' de saúde.

Nota emitida pela Sociedade Brasileira de Pediatria - 

Fonte: http://www.sbp.com.br/comunicacoes-publicas/nota-de-esclarecimento-a-sociedade/


NOTA DE ESCLARECIMENTO À SOCIEDADE


Rio de Janeiro, 5 de agosto de 2016
Em 2012, na abertura dos Jogos Olímpicos de Londres, a Inglaterra apresentou na solenidade que deu início à competição o seu sistema de saúde como um motivo de orgulho nacional. Quatro anos depois, coincidentemente no dia da abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, o Brasil dá um exemplo contrário. 
Ao criar o  Grupo de Trabalho para discutir e elaborar o projeto de plano de saúde com caráter popular, o Ministério da Saúde coloca em risco os princípios da universalidade, da integralidade e da equidade do nosso Sistema Único de Saúde (SUS).
A Sociedade Brasileira de Pediatra (SBP) entende que a autorização da venda de “planos populares” beneficiará apenas as operadoras de planos de saúde, que têm acumulado lucros exorbitantes e que entre janeiro de 2015 e junho de 2016 movimentou em torno de R$ 180 bilhões, de acordo com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Trata-se de uma medida populista e temerária, que não aliviará o SUS de seus graves problemas e nem trará ganhos reais para a população, especialmente a que tem menor poder aquisitivo. 
Para os 35 mil pediatras brasileiros, envolvidos diretamente na assistência de milhões de crianças e adolescentes, apenas a adoção de medidas estruturantes, como o fim do subfinanciamento; o aperfeiçoamento da gestão; e o combate à corrupção, entre outras, trarão à sociedade o direito à Saúde, como prevê a Constituição, segundo parâmetros de universalidade, integralidade e equidade, no nível mais alto da dignidade humana. 
SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Uma PEC devastadora e brutal, a 241


Texto publicado no site da CNBB - Confederação Nacional dos Bispos do Brasil 

Dom Roberto Francisco Ferreria Paz
Bispo de Campos e Referencial Nacional da Pastoral da Saúde


A proposta de Emenda Constitucional 241/2016 focaliza a transferência de recursos públicos das áreas sociais para o pagamento de juros e para a redução da dívida pública. Estabelece um "Novo Regime Fiscal", encaminhado para a Câmara de Deputados no dia 15 de junho de 2016. Esta medida de contenção asfixiante, parte de uma premissa falsa segundo o Economista Francisco Funcia, da PUC- SP, que seria a grave situação econômica do país; em nota à imprensa, foi divulgado pelo Ministério da Fazenda, em 24 de junho de 2016: "A situação do Brasil é de solidez  e segurança porque os fundamentos são robustos. O país tem expressivo volume de reservas internacionais e o ingresso tem sido suficiente para financiar as transações correntes. As condições de financiamento da dívida pública brasileira permanecem sólidas neste momento de volatilidade nos mercados financeiros em função de eventos externos. A dívida publica federal Nacional conta com amplo colchão de liquidez".  Como se verifica na declaração não há no país uma situação caótica que exija um ajuste tão violento e brutal, a ponto de "congelar" as despesas federais no patamar dos valores de 2016, por um prazo de 20 anos.

1. Qual o objetivo é finalidade da PEC 241?
A agenda explícita desta proposta é como está na argumentação do governo interino: "estabilizar o crescimento da despesa primária, como instrumento para conter a expansão da dívida pública”. Esse é o objetivo desta proposta de Emenda à Constituição". No entanto traduzindo para os efeitos reais da sua aplicação, significa cortes drásticos  na saúde, educação, habitação, transportes, etc ... para priorizar o absoluto do déficit nominal e da dívida pública. Esta visão econômica, que volta aos anos 90 da hegemonia neoliberal e do Acordo de Washington, deixa claro que a dívida está muito acima da vida do povo e que a economia para ser sanada exige o sacrifício da população especialmente aqueles que não estão incluídos no mercado. Para confirmar esta assertiva o Ministro Henrique Meirelles se posiciona em entrevista do 01/07/2016: "As despesas com educação e saúde são itens que ... junto com a previdência, inviabilizaram um controle maior das despesas nas últimas décadas. Educação e saúde inviabilizam ajustes". Trata-se não só de limitar despesas mas de desconstruir a Arquitetura dos direitos sociais que consolidou o sistema de seguridade social da CF de 1988, quer se eliminar o Estado Social de Direito desmontando o SUS, levando-o a falência e colapso total. 

2. Se passar esta PEC letal, quais serão as consequências para nossa população?
Se a PEC for aprovada, serão perdidos não somente os direitos sociais inscritos na Constituição Federal, mas a qualidade de vida da população brasileira sofrerá um forte rebaixamento, voltando a expectativas de longevidade bem inferiores às atuais. No caso particular da saúde poderão provocar a ampliação de doenças e, até mesmo, mortes diante da redução de recursos para o financiamento do SUS nos próximos 20 anos. É importante não esquecer que está PEC estabelece que os valores de 2016 serão a base para a projeção de despesas até 2037, ou seja, que não está previsto o crescimento populacional, a mudança de perfil demográfico com o envelhecimento da família brasileira em condições de saúde mais precárias, que demandará mais o sistema, e da incorporação tecnológica crescente neste setor. Para ilustrar o recorte de recursos basta afirmar que esta proposta tivesse sido aplicada no período de 2003-2015 teriam sido retirados do SUS R$ 314,3 bilhoēs (a preços de 2015), sendo somente no ano 2015, R$ 44,7 bilhões, cerca de 44% a menos do que foi efetivado pelo Ministério da Saúde no mesmo exercício. 
É conveniente alertar também que a redução de recursos federais para o financiamento do SUS atingirão fortemente Estados e Municípios, pois cerca de 2/3 das despesas do Ministério da Saúde são transferidas fundo a fundo para ações de atenção básica, média e alta complexidade, assistência farmacêutica, vigilância idemiológica e sanitária, entre outras.

3. Existe outro caminho que os cortes na saúde, e o recuo nos direitos sociais?
A pesquisadora em saúde da ENSP/ FIOCRUZ e Diretora Executiva do CEBES, a Dra. Isabela Soares Santos, dá uma resposta positiva citando o Economista de Oxford Dr. David Stuckler que estudou a política econômica de austeridade em 27 países (1995-2011). Este renomado cientista gerou o chamado "multiplicador fiscal " que mostra o quanto de dinheiro se consegue de volta com diferentes gastos públicos. Os melhores índices multiplicadores vem de gastos com educação e saúde, os piores com a defesa. Ele argumenta: "Saúde é oportunidade de gerar economia e crescer mais rapidamente. Se cortar em saúde, gera mais mortes, aumento e surtos de infecções por HIV, TB, DIP, aumento dos índices de alcoolismo e suicidio, aumento dos problemas de saúde mental, risco de retorno de doenças erradicadas. Saúde não deve ser cortada em situação de crise,  pois os governos deveriam investir mais em saúde em tempos de crise, para sair dela". Os próprios diretores do FMI criticam as políticas recessivas de inspiração neoliberal (site da BBC.com,  30 de junho de 2016), em vista disso, o tripé econômico de meta inflação, altos juros e superávit primário trás como consequências: o aumento da desigualdade, colocam em risco a expansão duradoura e prejudicam seriamente a sustentabilidade do crescimento.

4. Não seria o caso de ampliar os arranjos públicos privados e favorecer o seguro privado (PHI) para sair de crise? 
Na verdade, nestes arranjos públicos privados o sistema público perde (maiores e mais complexas filas), o arranjo contribui para a iniquidade no financiamento no acesso e no uso, o arranjo não diminui a demanda por serviços e financiamento, o arranjo não contribui para os objetivos gerais do SNS (equidade, universalidade e solidariedade), não há evidência que o PHI alivie o SNS. É interessante constatar que a União Europeia proíbe os países membros de regular o PHI quando houver SNS, com o argumento de defender o "sistema estatutário", que foi escolhido pela nossa Nação na CF/1988. Lamentavelmente o que vemos é uma aposta crescente no setor privado o que contribui para a segmentação do sistema de saúde brasileiro como um todo, introduzindo a lógica mercantil, abandonando a luta histórica do movimento sanitarista brasileiro que conseguiu a implementação do SUS e sua inserção na Carta Magna, garantindo saúde integral e universal para toda a população.

5. Que fazer para impedir a PEC 241 e os seus desdobramentos perversos na seguridade social e na saúde? 
Em primeiro lugar é necessário ter clareza que esta desconstituição do SUS se apoia na ideologia do Estado Mínimo e no retorno a uma Democracia restringida, tutelada, com os direitos sociais à míngua. O problema para estes economistas sem coração é o estado, o tamanho do SUS. Em compensação não há medidas para penalizar os mais ricos, achatar as desonerações fiscais, ou para reduzir os juros: o ajuste acaba se concentrando nas despesas que garantem os direitos sociais como meio de criar superávits primários crescentes, visando a diminuição da dívida pública, de acordo com o economista e doutor em saúde coletiva do IMS-UERJ, Carlos Otávio Ocké-Reis. Na prática, assistiremos ao desmonte do SUS e a privatização do sistema de saúde, onde todo esforço para melhorar as condições de saúde das famílias brasileiras ficará à deriva, prejudicando os recentes avanços obtidos no combate à desigualdade e acesso universal à saúde coletiva.
Em segundo lugar devemos manifestar nosso repudio e indignação, pensando como sempre nos mais pobres que serão as vítimas principais desta política antipopular contra a vida. Conclamar a uma mobilização geral em defesa da Constituição, do Estado Social de Direito, da Seguridade Social e do SUS. O SUS é nosso, o SUS é da gente, direito conquistado, não se compra nem se vende! Que Jesus o Rosto da misericórdia do Pai, nos ilumine e nos fortaleça na caminhada e defesa de saúde integral e universal para todos os brasileiros /as.


Campos dos Goytacazes, 18 de Julho de 2016.

Disponível em: http://www.cnbb.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=19208:uma-pec-devastadora-e-brutal-a-241&catid=391&Itemid=204

Brasil: o segundo golpe – artigo de Rosa Maria Marques

Publicado no site da ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva

Escrito por: Rosa Maria Marques

"Mas a PEC 241 não é um ajuste. Trata-se da negação da política na esfera fiscal. É a “técnica” se impondo com toda sua força, para fazer valer os interesses mais gerais do grande capital financeiro"


Faz 74 dias que o Senado brasileiro aprovou a admissibilidade do processo de impeachment de Dilma Rousseff e que Michel Temer assumiu interinamente a presidência da república. Espera-se que, no início de agosto, o Senado decida se o impeachment terá prosseguimento, isto é, se Dilma irá a julgamento final. Para a maioria da esquerda brasileira, todo o processo não passou de um simples golpe capitaneado pela direita vinculada ao grande capital e alimentada pelos principais meios de comunicação do país, posto que Dilma não cometeu crime de responsabilidade durante sua gestão. Daí a luta pelo “Fora Temer!”, que se completa com o chamamento de eleições gerais, embora esse complemento não receba unanimidade entre os setores da esquerda.
Desde seu primeiro momento, o governo Temer foi alvo de muitas críticas e provocou a mobilização de vários setores da sociedade. Em seu primeiro mês de gestão, teve que voltar atrás na decisão de extinguir o Ministério da Cultura, três de seus ministros foram substituídos devido a denúncias de envolvimento em casos de corrupção e ficou evidente o desconhecimento de vários de seus titulares da situação e da matéria atinente a sua pasta. Talvez devido a esses fatos e a outros, em muitas das análises da esquerda brasileira o governo Temer seja considerado fraco. Contudo, naquilo que importa para o grande capital, os principais ministérios estão na mão de homens que sabem defender seus interesses, tais como o Ministério da Fazenda, com Henrique Meirelles, e o Ministério das Relações Exteriores, com José Serra. Esse último, além de claramente defender em todas as oportunidades a adesão do Brasil aos tratados de livre comércio, coloca-se contrário à presidência da Venezuela no Mercosul. Nesse caso, não há surpresas, estando tudo dentro do esperado. A grande surpresa ficou por conta de Henrique Meirelles que, ao concretizar o que tinha sido divulgado no documento “Ponte para o futuro” (documento apresentado pelo PMDB, em 2015), foi muito mais além do que se poderia imaginar, sob quaisquer circunstâncias.
Naquele documento, entre seus vários aspectos, era defendido o fim da desindexação de recursos para a educação e a saúde, introduzindo a prática de trabalhar com o chamado “orçamento zero”, de modo que, a cada ano, os recursos destinados a cada área seriam resultado de negociação, elegendo como princípio maior o equilíbrio fiscal de longo prazo. Para garantir a aplicabilidade desse preceito, propunha a criação de um Comitê Independente para sugerir a continuidade ou o fim dos programas governamentais de acordo com os seus desempenhos. Na época, e em outro artigo, já apontava que isso resultaria na diminuição da capacidade de atuação política do poder executivo, isto é, de sua independência, pois, além desse comitê, o documento propunha também a criação de uma instituição que funcionaria como uma autoridade orçamentária. Em outras palavras, tratava-se de introduzir, no aparelho de Estado, práticas existentes nas empresas privadas, tais como auditoria constante e escolhas definidas a partir do critério da economicidade. Assim, não só o executivo estaria tolhido no exercício de suas funções, como dificilmente demandas oriundas de movimentos sociais seriam ouvidas. Não imaginava, na época, nada pior do que estava sendo proposto.
Eis que, em 15 de junho de 2016, Meirelles encaminha um projeto que visa alterar a Constituição brasileira, a chamada PEC 241 (Projeto de Emenda Constitucional 241), instituindo um novo regime fiscal. Esse projeto simplesmente propõe que os gastos federais sejam congelados por vinte anos, tendo como base o efetivamente gasto em 2016. Os valores dos orçamentos dos anos seguintes seriam somente atualizados pelo índice da inflação e seus valores reais poderiam, a depender dos resultados obtidos em termos de equilíbrio fiscal, ser revisados somente depois de dez anos. Evidentemente que essa proposta tem como justificativa o diagnóstico de que todos os males da economia brasileira devem-se à escalada desenfreada do gasto público e que, portanto, esse deve ser freado. A exposição de motivos que acompanha a PEC 241 é cristalina a esse respeito. Mas, no espaço deste pequeno artigo, não é possível se indicar as várias falácias nela contidas. Importa é denunciar a natureza dessa proposta a partir de suas consequências sobre o que se entende por Estado em um regime democrático.
Em um regime democrático burguês, o executivo é eleito pela maioria dos votos e, a partir daí, executa em teoria seu programa, o que é mediado pela representação das demais forças políticas no congresso nacional e pelas demandas dos setores sociais populares organizados. Em outras palavras, o político está sempre presente. No caso do orçamento do governo federal, esse é resultado dos diferentes interesses presentes na sociedade. Esses se manifestam na proposta inicial encaminhada pelo governo, nas emendas e supressões apresentadas pelos parlamentares e no cumprimento da execução dos recursos orçados e planejados em cada área. O que Meirelles está propondo é, portanto, em nome do equilíbrio fiscal, extinguir o funcionamento democrático do próprio Estado burguês. A partir de uma relação de forças específica, congela-se o orçamento por vinte anos, tempo de uma geração.
De meu ponto de vista, a esquerda brasileira não está se dando conta do significado dessa proposta. Tendo a dizer que em parte a desconhece. Fala em ajuste fiscal, tal como falava durante o governo Dilma (principalmente no último período) e como sempre falou, quando recursos eram contingenciados em função da arrecadação. Mas a PEC 241 não é um ajuste. Trata-se da negação da política na esfera fiscal. É a “técnica” se impondo com toda sua força, para fazer valer os interesses mais gerais do grande capital financeiro. Esse é o segundo golpe, e o mais perigoso.
*Rosa Maria Marques, professora titular do Departamento de Economia e do Programa de Estudos Pós-graduados em Economia Política da PUCSP e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde
Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/2016/07/brasil-o-segundo-golpe-artigo-de-rosa-maria-marques/


quinta-feira, 21 de julho de 2016

Desmonte do SUS: mito ou verdade?


Extraído do Site do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde - CEBES.

Desmonte do SUS: mito ou verdade?[1]

Texto de Carlos Octávio Ocké-Reis[2] e Francisco R. Funcia[3]

Não há dúvidas entre os especialistas sobre o subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS).

Tampouco há desconfiança acerca do papel indutor das políticas de saúde sobre o emprego, a produção, a renda e a inovação tecnológica. Sua natureza redistributiva parece igualmente evidente, bem como suas implicações sobre a produtividade do trabalho, o bem-estar social e o crescimento econômico. 
Menos claro, entretanto, é compreender seu caráter anticíclico no atual quadro recessivo da economia brasileira: seja combatendo o desemprego, seja melhorando as condições de saúde da força de trabalho, ou ainda, sedimentando terreno para retomada de um ciclo de desenvolvimento inclusivo e sustentável. 
Diante de doenças transmissíveis, não transmissíveis e dos agravos decorrentes de causas externas, essa incompreensão é preocupante, considerando o aumento da procura pelo SUS, em parte causada pela expulsão da clientela do mercado de serviços de saúde, cujos planos empresariais deveriam ser regulados estritamente pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS (preço, cobertura e qualidade). 
Como o gasto público em saúde gira apenas em torno de 4% do PIB, a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241/2016 parece arriscada para a segurança das famílias brasileiras, uma vez que, para implantar o ajuste fiscal, pretende-se estabilizar a trajetória da dívida pública subtraindo direitos sociais. 
Essa PEC propõe um novo regime fiscal, fixando em zero o crescimento real das despesas primárias. A base para a projeção desse teto será o valor pago em 2016, que corrigido pela inflação, definirá o valor máximo da despesa do governo federal nos anos seguintes. Em resumo, para reduzir o déficit, as despesas primárias devem ser congeladas, bem como suprimidas as vinculações constitucionais, tornando o modelo de seguridade social instaurado na Constituição de 1988 letra morta. 
No caso da saúde, essa regra foi adaptada pelo art. 104, que estabeleceu um piso, um mínimo, invés de um teto. Tendo em mente a regra constitucional (EC 86), o piso de 2017 seria igual a 15% da receita corrente líquida de 2016 mais a inflação do período. Vale dizer, essa base fixa é o parâmetro para os recursos que serão doravante destinados às ações e serviços públicos de saúde (ASPS), tendo validade durante duas décadas. 
Para se ter uma noção da magnitude do estrangulamento financeiro, construímos dois cenários[4] para demostrar a gravidade do fato: 
(i) se a PEC 241 não for aprovada este ano, apesar da tentativa de aplicar o dispositivo do “teto” por meio do PLDO[5] 2017, o financiamento do SUS pela União perderá aproximadamente R$ 12 bilhões (tabela 1) em comparação a EC 29, considerando o efeito do escalonamento percentual da EC 86;


(ii) Se a PEC 241 for aprovada esse ano, a partir de um exercício contrafactual, o financiamento do SUS perderia aproximadamente R$ 148 bilhões (tabela 2, hipótese 2), quando comparamos entre 2003 e 2015 o que foi efetivamente gasto (EC 29) com a regra estipulada pela PEC 241; na hipótese 1, ao comparar a proposta da Fazenda com a regra da EC 29 (vigente naquele período), a perda seria de R$ 314 bilhões.


Cabe ressaltar que a PEC não leva em conta o crescimento populacional, a especificidade da inflação setorial (maior do que a taxa média de inflação da economia) ou a própria necessidade de aumentar os recursos do SUS em relação ao PIB (pelo contrário, quanto maior for seu crescimento, menor será o gasto público em saúde). 
Essa desconstituição do SUS se apoia na ideologia do estado mínimo. O problema é o estado, o tamanho do SUS. Em compensação não há medidas para penalizar os mais ricos, achatar as desonerações fiscais ou para reduzir os juros: o ajuste acaba se concentrando nas despesas que garantem os direitos sociais como meio de criar superávits primários crescentes, visando a diminuição da dívida pública. 
Na prática, assistiremos o desmonte do SUS e a privatização do sistema de saúde, onde todo esforço para melhorar as condições de saúde das famílias brasileiras ficará à deriva, prejudicando os recentes avanços obtidos no combate à desigualdade, uma tragédia que lembra o mito de Sísifo.

Baixe o PDF do artigo aqui


[1] Os autores agradecem aos demais participantes do Grupo Técnico Interinstitucional de Discussão sobre o Financiamento do SUS pelas reflexões realizadas a respeito da PEC 241/2016; porém, as análises e comentários presentes neste artigo são de nossa inteira responsabilidade.
[2] Economista e doutor em saúde coletiva (IMS-UERJ).
[3] Economista e mestre em economia política (PUC-SP).
[4] Os valores e referências da Tabela 1 e as simulações da Tabela 2 foram desenvolvidas em conjunto no Grupo Técnico Interinstitucional de Discussão sobre o Financiamento do SUS.
[5] Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias da União.

Fonte: http://cebes.org.br/2016/07/desmonte-do-sus-mito-ou-verdade/


segunda-feira, 27 de junho de 2016

PEC 241/2016 pode acabar com o SUS, alerta CNS

 Em tramitação no Congresso Nacional, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241/2016 institui um novo regime fiscal. Isso significa, em linhas gerais, estabelecer um teto a ser gasto com os recursos, principalmente, para a saúde e a educação. A proposta terá validade por 20 anos, com possibilidade de revisão em 10 anos. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) repudia com veemência a limitação dos gastos com a saúde que irá implicar diretamente no SUS.

        De acordo com o consultor da Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento (Cofin) do CNS, Francisco Funcia, a PEC 241 é um atendado à saúde pública brasileira, que implicará na limitação dos gastos com o setor que mais necessita de aplicação de recursos. “Com essa proposta o teto para as despesas primárias passa a vigorar estabelecendo o limite de gastos baseados pela inflação do ano anterior e não mais pela sua receita. Isso significa que Estados e Municípios não poderão ultrapassar os valores já estipulados”, diz.

Para André Luiz, conselheiro nacional de saúde, a PEC 241 representa um risco eminente à saúde pública brasileira. “Temos a sensação de estarmos numa escada rolante que só nos leva para baixo. Quando a gente pensa que com a PEC 01 a situação da saúde iria melhorar, essa proposta nos joga um balde de água fria. É necessário mais do que nunca investirmos em novas formas de financiamento para a sustentação do SUS”, afirma.

Sobre a PEC 241/2016

        Apresentada pelo governo interino por meio do Ministério da Fazenda, a PEC 241 limitará os gastos públicos federais. Pela proposta, o aumento das despesas da União, incluídos os Poderes Legislativo e Judiciário, não poderá ser maior que a inflação do ano anterior. Se for aprovado pelos parlamentares, o novo regime fiscal já entra em vigor no próximo ano.

        No o texto apresentado, valores mínimos dos gastos com saúde e educação da União passarão a ser corrigidos pela inflação do ano anterior, e não mais pela receita. O Congresso Nacional, no entanto, poderá decidir onde alocar os recursos, respeitando tais valores mínimos, que serão um piso.

Tramitação

        A PEC será analisada, em primeiro lugar, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara quanto à admissibilidade. Se aprovada, será examinada por uma comissão especial e, depois, pelo Plenário, para votação em dois turnos. Caso seja aprovada pelos deputados, a proposta seguirá para apreciação do Senado.


Fonte: Conselho Nacional de Saúde - http://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2016/06jun27_PEC_241_2016_pode_acabar_SUS_alerta_CNS.html

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O SUS e a desigualdade no Brasil

O Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes que busca oferecer acesso universal à saúde: mas como resolver o subfinanciamento do SUS?
Por Alexandre Padilha
Terça-feira, 6 de janeiro de 2015
Fonte: Site PT São Paulo. Disponível em: 
http://www.linhadireta.org.br/artigo/?p=Opini%E3o&acao=vernoticia&id=43926 

Às vésperas do Natal, depois de dias de internação, felizmente a modelo e apresentadora Andressa Urach recebeu alta hospitalar, com vida e pronta para se reabilitar. Durante todos esses dias, a imprensa e as redes foram ricas em comentar sobre a vida da modelo, sobre boatos em relação a sua saúde, sobre técnicas estéticas, sobre a ditadura da beleza e clínicas e mais clínicas. Raras matérias traziam uma informação que surpreende a todos: depois de um périplo por clínicas particulares sem solução definitiva, foi em um hospital 100% SUS, do Grupo Hospitalar Conceição (um dos poucos próprios do Ministério da Saúde) que a modelo teve a sua vida salva e a saúde reabilitada. Foram médicos e profissionais de saúde que enfrentam todas as carências que estão presentes nos hospitais públicos, que cuidaram da complicação decorrente do procedimento estético. Mais uma vez, neste ato, garantiram a modelo o direito de todos os 200 milhões de brasileiros: o acesso a um sistema de saúde que busca ser universal.

Nem no meu maior devaneio SUSista esperava uma manchete do tipo: "Hospital do SUS salva modelo com complicações em procedimentos estéticos realizados em clínica privada". Ou " Ao contrário de Miami, modelo não precisou pagar antecipadamente por vida salva em Hospital do SUS". Mas é preciso falarmos alto para que esta, uma das contradições da relação entre dois sistemas de saúde, público e privado, não passe desapercebida. Pelo tamanho atual dos dois sistemas no Brasil, é fundamental que as contradições sejam cada vez mais enfrentadas, sob risco de inviabilizarmos o projeto de um sistema público universal com qualidade e reforçarmos a iniquidade também no sistema privado.

O Brasil é o único país do mundo, com mais de 100 milhões de habitantes, que busca oferecer a sua população o acesso universal a saúde. Nem mesmo as novas Constituições da América Latina, apelidadas de bolivarianas, foram tão ousadas:" Saúde é DIREITO de todos e DEVER do Estado". Ao mesmo tempo, temos cerca de 50 milhões de usuários de planos de saúde médico-hospitalares (eram 30 milhões em 2003) e 70 milhões, incluindo planos odontológicos. Os números de ambos os sistemas impressionam ministros da Saúde e investidores de todo o mundo. O caso similar a modelo, pacientes do sistema privado recorrerem ao SUS, por falta de cobertura ou por situação de emergência é muito mais comum do que se imagina. Desde 2011, quando assumi o Ministério da Saúde, implantamos um conjunto de mudanças de gestão para identificar quando isso ocorre. Com elas, busca-se garantir o ressarcimento do plano de saúde ao SUS, porque é dele que se deve cobrar, não do paciente. Desde então, as operadoras são obrigadas a emitir um número de cartão SUS para todo usuário de plano, permitindo ao Ministério este rastreamento. Você que me lê e é usuário de plano de saúde tem número de cartão SUS e talvez não saiba. De lá para cá, foram recordes sucessivos de recuperação de recursos para o SUS: em 3 anos, mais do que em toda história da Agência Nacional de Saúde (ANS), criada em 2000. Mas muito precisa-se avançar nessa cobrança, e o governo Dilma prosseguiu em novas medidas em relação a isso. O motivo mais comum de internação no SUS por detentores de planos de saúde, acreditem: parto. Recentemente, correu as redes a notícia de turista canadense, que teve parto de urgência no Havaí e, quando voltou para casa, recebeu conta de US$2,5 milhões para pagar.

Poderia citar outros exemplos em que somos usuários do SUS sem nem reconhecermos. Desde 2001, o Brasil é recordista mundial de transplantes em hospitais públicos. O SAMU salva vidas sem perguntar o plano ou exigir cheque. A vigilância sanitária estabelece regras e fiscaliza a comida dos restaurantes, inclusive os chiques, de preços estratosféricos. As mesmas analisam risco a saúde de equipamentos, medicamentos, bebidas vendidas em massa, cosméticos e produtos de estética. O próprio uso do HIDROGEL já estava condenado pela Anvisa, evitando novos casos como o de Andressa Urach.

Estas contradições da convivência de dois sistemas públicos e privado impactam nos maiores desafios atuais de sobrevivência do projeto SUS: o seu subfinanciamento e a iniquidade no acesso aos serviços. E criam um ambiente, no mercado de trabalho e no complexo industrial da saúde, que influencia fortemente outro fator decisivo para uma saúde pública humanizada: a formação e a postura dos profissionais de saúde.

Há um consenso suprapartidário no Brasil: a saúde pública é subfinanciada. A divergência é como resolver este fato. Desde o final da CPMF, que retirou R$40 bilhões anuais do orçamento do Ministério da Saude, o Brasil investe na saúde pública em média 3 vezes per capta menos do que parceiros sul americanos como Chile, Argentina e Uruguai; cerca de 7 a 8 vezes do que sistemas nacionais europeus recentes como Portugal e Espanha, cerca de 11 vezes menos do que o tradicional Sistema Nacional Inglês. Ao mesmo tempo, segundo dados recentes publicados pelo IPEA, a isenção fiscal referente aos planos de saúde no Brasil chegou a cerca de R$ 18 bilhões. Ou seja, o mesmo Estado que não garante recursos suficientes para prover um sistema público para todos, co-financia a alternativa para uma parcela da população, que se vê obrigada a pagar valores expressivos para ter acesso a saúde. Além disso, o mesmo Estado suporta o atendimento de vários procedimentos que de alguma forma não são cobertos pelos planos. A incorporação tecnológica, o envelhecimento da população e o impacto dos acidentes automobilísticos e da violência urbana nos custos dos serviços de emergência e reabilitação, transformam esta equação, já precária, em insustentável. Não a toa, a melhoria da saúde é a primeira demanda da população e ter um plano de saúde, o sonho da nova classe trabalhadora. No último período, dois avanços importantes do governo Dilma foram conquistados: a regra que estabelece quanto União, estados e municípios são obrigados a investir em saúde e a vinculação de um percentual dos recursos do pré-sal. Mas precisamos avançar sempre.

As opções para o financiamento da saúde são uma das expressões da desigualdade não tão revelada no nosso país. É mais do que hora de todos nós, que colocamos a redução das desigualdades como centro de um projeto político, enfrentá-las. Se não o fizermos, perderemos a capacidade de interlocução com segmentos expressivos da classe trabalhadora, que sofre com a baixa qualidade e os custos dos sistemas públicos e privados. Temos que ir para ofensiva no diálogo com a sociedade e explicitar que ampliar o financiamento a saúde passa, necessariamente, por inverter o sistema tributário injusto com o qual convivemos. Não é razoável, em um país como o Brasil, que alguém, ao receber R$ 60 mil em 12 meses de trabalho, paga 27% de Imposto de Renda, enquanto alguém que receber R$ 2 milhões de herança, praticamente não será taxado. Em países como EUA (30-40%) França (45%), Alemanha, Japão (50%) as alíquotas para heranças seriam outras. Estudos de 1999 mostram que imposto sobre fortunas no Brasil, entre 0,8% a 1,2%, em fortunas acima de R$ 1 milhão, renderiam uma arrecadação de cerca de 1,7% do PIB, mais do que era obtido pela CPMF.

A formação e a conduta profissional é o outro território invadido por estas relações dos dois sistemas público e privado. A batalha do Mais Médicos, as denúncias recentes de abuso sexual e preconceito por alunos de medicina nas faculdades e a atitude absurda de algumas lideranças condenarem a campanha antiracismo organizada pelo Ministério da Saúde só explicitaram o arcabouço de valores que influencia a formação dos nossos futuros profissionais, de ambos os sistemas. No cerne, há duas correias de tensão, que se alimentam mutuamente. Por um lado, um ideário liberal de exercício da profissão, que alimenta, desde os primeiros dias de graduação, uma não aposta em um sistema público de qualidade e o desrespeito em relação aos seus usuários: pobres, mulheres, negros, homossexuais e "gente não diferenciada". Por outro, um mercado dinâmico e lucrativo de tecnologia, órteses, próteses, equipamentos, fármacos, serviços, publicações, congressos que financia uma visão cada vez ultraespecializante da formação e da atuação em saúde. Não a toa, a investigação iniciada pelo Ministério da Saúde, em Março de 2013 que teve luz recente graças a matéria de TV, e o Mais Médicos incendiaram o debate, questionaram paradigmas e condutas. Não há nenhum profissional de saúde no Brasil, nem aquele que se especializou em realizar procedimentos estéticos em clínicas privadas, que não tenha dependido do SUS para se formar. Nos meus tempos de estudante de medicina cunhamos a frase: "chega de aprender nos pobres para só querer cuidar dos ricos"

Esta realidade desafiadora nos abre uma grande oportunidade. O entendimento de que um sistema público dessa dimensão, em um país tão desigual e diverso como o nosso, gera plataforma continental para um amplo complexo de indústria e serviços no campo da saúde. O Brasil será mais rico e menos desigual se pudermos articular as duas perspectivas. Não será possível sustentar um sistema público de saúde sem crescimento econômico e para tal é necessário colocarmos os 2 pés no universo da inovação tecnológica. Ao mesmo tempo, o complexo de indústrias e de serviços da saúde não sobrevive no Brasil se desprezar o mercado interno impulsionado pelo acesso a um sistema público, cada vez mais tecnológico. Usar o poder de compra do estado para fortalecer um setor econômico que gere empregos e inovação tecnológica no Brasil teve, na Saúde, a sua experiência recente mais exitosa. Ela foi calcada de um lado na ousadia, ao estabelecer o interesse público e nacional como o rumo a ser seguido, e previsibilidade, regras que estimulassem o setor privado a fazer este jogo de interesse para o Brasil. Beber dessa experiência é fundamental para fortalecermos a Saúde como um impulso, e não um peso a carregar, na agenda de desenvolvimento do Brasil.




*Alexandre Padilha é ex-ministro da Saúde e ex-candidato a governador de SP pelo PT

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Uma análise sobre a Lei de incorporação de tecnologias no SUS.

Novas regras da assistência terapêutica no âmbito do Sistema Único de Saúde

Por Marlon de Lima Canteri


Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/20942/novas-regras-da-assistencia-terapeutica-no-ambito-do-sistema-unico-de-saude



“No final de outubro, entrou em vigor a Lei nº 12.401/2011 (publicada em 29/04/2011, com vacatio legis de 180 dias), a qual introduziu importantes alterações no tocante à assistência terapêutica no âmbito do Sistema Único de Saúde.

O novo diploma legal acrescenta oito artigos a Lei nº 8080/90 (definida como lei orgânica do Sistema Único de Saúde), bem como um novo capítulo "da assistência terapêutica e da incorporação de tecnologia em saúde". A Lei originou-se do Senado e decorre da aprovação de substitutivo (Emenda nº 1 da CCJ) ao Projeto de Lei do Senado-PLS nº 338 do Senador Flavio Arns, o qual tramitou em conjunto com PLS nº 219/07, de autoria do Senador Tião Viana. Ela sintetiza calorosos debates parlamentares, e conjuga duas preocupações centrais dos projetos de lei originais. O projeto do Senador Arns, pretendia a adoção de prazos para a incorporação pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos. Por sua vez, o PLS do Senador Viana sujeitava o fornecimento de qualquer medicamento a previsão em protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, preocupado com os impactos orçamentários da judicialização das políticas públicas em questões de saúde.

A principal novidade legislativa é definir que a assistência terapêutica integral no âmbito do Sistema Único de Saúde se dará em conformidade com os Protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas para as doenças, nos termos do artigo 19-M [01] da Lei n.º 8.080/90.

Surge positivada em lei, agora, no artigo 19-N, inciso II, a definição de que Protocolo clínico e diretriz terapêutica é o documento que estabelece critérios para o diagnóstico da doença ou do agravo à saúde; o tratamento preconizado, com os medicamentos e demais produtos apropriados, quando couber; as posologias recomendadas; os mecanismos de controle clínico; e o acompanhamento e a verificação dos resultados terapêuticos, a serem seguidos pelos gestores do SUS.

A relevância de legislação salta aos olhos, pois embora houvessem normas administrativas definindo a forma de elaboração dos protocolos clínicos [02], positivou-se por lei, não apenas em portarias ou regulamentos, a obrigatoriedade de serem respeitadas as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico ou, na ausência desses, a relação de medicamentos instituída pelo SUS.

Este entendimento cumpre a determinação do legislador constitucional de que o direito à saúde é garantido mediante políticas públicas, nos termos do artigo 196, da Constituição da República [03]. Note-se que a Constituição da República/88 remeteu, no artigo 197 [04], ao legislador ordinário dispor sobre regulamentação, fiscalização e controle das ações e serviços de saúde. A Lei nº 12.401/11 cumpre, portanto, esta finalidade.

A competência para a constituição de protocolo clínico é atribuição da União, por meio do Ministério da Saúde, nos termos do artigo 19-Q : A incorporação, a exclusão ou a alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, são atribuições do Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Nada impede, entretanto, que os Estados adotem protocolos clínicos no âmbito de competência estadual, mas a responsabilidade pelo financiamento dos fármacos, nestes casos, será das próprias Secretarias Estaduais da Saúde. Entendo que em um contexto de crescente participação de Estados e Municípios no financiamento do SUS a assunção de novas obrigações financeiras decorrentes de adoção de PCDT no âmbito estadual são indesejáveis. Observe-se que atualmente os Estados e Municípios são os maiores financiadores do SUS, com os seus gastos elevando-se de 40% do total em 2000 para 55% em 2008 [05].

Interessante é a solução dada pelo legislador nos casos de patologias em que ainda não há definição dos protocolos clínicos. A lei previu regramento específico para a dispensação. Ela será realizada com base nas relações de medicamentos instituídas pelo gestor federal do SUS, e de forma suplementar com base nas relações de medicamentos instituídas pelos gestores estaduais e pelos gestores municipais do SUS, no âmbito de sua competência [06]. Há vedação expressa, ainda, que o SUS pague por medicamentos, produtos ou procedimentos clínicos e cirúrgicos experimentais ou não autorizados ou não registrados pela ANVISA (artigo 19-T, inciso I e II)

Os medicamentos instituídos pelo gestor federal do SUS estão relacionados, principalmente, nas Portarias nº 2981/2009 (regulamenta o componente especializado da assistência farmacêutica) e nº 2982/2009 (regulamenta o componente básico da assistência farmacêutica.

De outro lado, esvazia-se a competência da Justiça Estadual nos caso de ações judiciais que pleiteiam o fornecimento de medicamentos que não se encontram nas relações do gestor federal, ou para patologias sem protocolo clínico ou diretriz terapêutica. Isso porque está positivado no já mencionado artigo 19-Q ser atribuições do Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS, a constituição ou a alteração de protocolo clínico. Demandas que pleiteiem fármacos nestas condições deverão ser julgados na Justiça Federal, em face da responsabilidade da União, por eventual omissão.

A positivação da divisão de competências no âmbito do SUS, promovida pela Lei nº12.401/11, auxilia diretamente no julgamento das ações judiciais que visam a concretude do direito à saúde. Nesse sentido, o Comitê Executivo do Paraná, do Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde [07], editou o Enunciado nº 4 que determina ao Judiciário observar as competências das instâncias gestoras do SUS, ao julgar questões de assistências à saúde [08].

Observe-se, ainda, que a incorporação pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico serão efetuadas mediante a instauração de processo administrativo, a ser concluído em prazo não superior a 180 (cento e oitenta) dias, contados da data em que foi protocolado o pedido, admitida a sua prorrogação por 90 (noventa) dias corridos, quando as circunstâncias exigirem, nos termo do artigo 19-R, cabeça.

A relevância das alterações legislativas visa aperfeiçoar a assistência terapêutica, no âmbito do sistema único de saúde.

Evidentemente para aqueles que entendem que o artigo 196 da CR/88 tem eficácia plena e aplicabilidade imediata, sendo ilegais ou inconstitucionais qualquer limitação, a nova norma não terá efeito prático. Para os partidários desta tese, o Estado deve fornecer qualquer terapia ou medicamento a quem pedir, pouco importando a previsão em protocolos clínicos; se o interessado é hipossuficiente, ou se a dispensação ocorreu em unidade do SUS.

Entretanto, a prevalecer o entendimento da obrigação estatal de fornecer terapias e medicamentos sem qualquer critério objetivo remanescerá a certeza da inviabilidade econômica do SUS. Atualmente avolumam-se ações exigindo prestações de saúde por meio de sentenças aditivas [09] que transformam o Poder Judiciário em ordenador de despesas do Estado, dificultando o planejamento governamental, no que tange às políticas públicas aprovadas por lei, e com recursos dirigidos para sua implementação através do sistema orçamentário.

A título de exemplificação, no Estado do Paraná, mais de 60% (sessenta por cento) da execução orçamentária para aquisição de medicamentos no ano de 2010 foi direcionado e determinado pelo Poder Judiciário [10]. Na órbita federal o Judiciário, por meio de sentenças, interfere no orçamento em proporção que se aproxima das alterações introduzidas pelo Congresso quando sede sua elaboração. Conforme comprovam Bittencourt e Graça [11], em média, o Legislativo dispõe de cerca de 2,96% do orçamento federal, e esse mesmo orçamento após aprovado e executado sofre o impacto de pelo menos 1,82% em função de decisões judiciais.

Conclui-se, assim, que a Lei nº12.401/11 introduz regras claras e propicia maior segurança jurídica no âmbito da dispensação farmacêutica e terapêutica no âmbito do Sistema Único de Saúde.”

Notas

1. Art. 19-M. A assistência terapêutica integral a que se refere a alínea d do inciso I do art. 6o consiste em: I - dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou, na falta do protocolo, em conformidade com o disposto no art. 19-P;

2. Portaria nº 375/2009 do Secretário de Atenção à Saúde/MS.

3. "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

4. "São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado"

5. Folha de São Paulo, 10 de setembro de 2011. Estados e municípios são a principal fonte do SUS, caderno A p.4.

6. Nos casos como o presente, prevê a Lei 12.401/2011, no artigo 19-P. "Na falta de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, a dispensação será realizada: I - com base nas relações de medicamentos instituídas pelo gestor federal do SUS, observadas as competências estabelecidas nesta Lei, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite; II - no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, de forma suplementar, com base nas relações de medicamentos instituídas pelos gestores estaduais do SUS, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada na Comissão Intergestores Bipartite; III - no âmbito de cada Município, de forma suplementar, com base nas relações de medicamentos instituídas pelos gestores municipais do SUS, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada no Conselho Municipal de Saúde."

7. Instituído pela Resolução 107, de 06 de abril de 2010 do Conselho Nacional de Justiça.

8. Enunciado nº 4 - Ao impor a obrigação de prestação de saúde, o Poder Judiciário deve levar em consideração as competências das instâncias gestoras do SUS.

9. Entende-se por sentença aditiva aquela que implica aumento de custos para o Erário, obrigando-o ao reconhecimento de um direito social não previsto originalmente no orçamento do poder público demandado. (SCAFF, Fernando Facury. Sentenças Aditivas, direitos sociais e reserva do possível, in Direitos Fundamentais orçamento e reserva do possível. Livraria do Advogado.ed. 2010. p. 133.)

10. DEMONSTRATIVO FÍSICO-FINANCEIRO DA DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS – 2007/2010, elaborado pela Secretaria de Estado da Saúde do Paraná.

11. DECISÕES JUDICIAIS E ORÇAMENTO PÚBLICO NO BRASIL:UMA APROXIMAÇÃO EMPÍRICA A UMA RELAÇÃO EMERGENTE in Direitos Fundamentais. Orçamento e reserva do possível. Livraria do Advogado, 2010, 2 ed., p.203

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Paulo Gadelha, presidente da Fiocruz, fala sobre financiamento do SUS.

Subfinanciamento do SUS começou com ‘garfada’ de 1994

Em entrevista à Carta Maior, o médico sanitarista Paulo Gadelha, presidente da Fiocruz, diz que, apesar da derrota no Congresso da proposta de criação de um imposto financeiro com destinação à Saúde, o reconhecimento de que o setor é subfinanciado é um avanço. Sem dinheiro novo, a imensa máquina de saúde pública brasileira, hoje referência mundial, continuará devendo qualidade de serviços ao seu usuário. O subfinanciamento, segundo Gadelha, começou com a primeira garfada dada na Saúde, em 1994, no governo de Fernando Henrique Cardoso.

Por: Maria Inês Nassif

"Depois do enorme recuo que foi, para a Saúde Pública, a derrubada da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), em 2007, a retomada do debate da regulamentação da emenda 29 pelo Congresso, que enterrou mais uma vez as chances de um imposto financeiro com destinação à Saúde, pode ter sido, enfim, um passo à frente nesse debate.

O médico sanitarista Paulo Gadelha, presidente da Fiocruz, acredita que, apesar da perda da contribuição social para a Saúde, os debates convergiram para o reconhecimento de que o setor é subfinanciado. A partir do fim da CPMF, o discurso hegemônico foi o de que a Saúde tinha problemas de gestão, não de financiamento. Ocorreu uma quebra desse padrão: com poucas exceções, chegou-se a um consenso, no Congresso, de que o ganho de gestão é marginal. Sem dinheiro novo, a imensa máquina de saúde pública brasileira, hoje referência mundial, continuará devendo qualidade de serviços ao seu usuário.

O subfinanciamento, segundo Gadelha, começou com a primeira garfada dada na Saúde, em 1994, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Se fosse mantida a referência constitucional, de destinação de 30% do Orçamento da Seguridade Social ao setor, a Saúde teria em caixa, já em 2008, R$ 110 bilhões. A queda da CPMF, em 2007, por sua vez, ocorreu no momento em que se formulava o “Mais Saúde”, programa que seria o segundo grande momento da Saúde Pública no Brasil (o primeiro foi a criação do SUS, em 1988). Foi uma estratégia, na sua opinião, de quebrar as pernas do governo.

Sanitarista de carteirinha, Paulo Gadelha, doutor em Saúde Pública, há 20 anos na Fundação Oswaldo Cruz, é desde 2008 presidente da entidade, eleito pelo voto direto dos funcionários. Gadelha vem da linhagem de médicos militantes da Saúde Pública que se envolveram na articulação vitoriosa do Sistema Único de Saúde (SUS), na Constituinte de 1988, produto de um movimento suprapartidário que foi o pai coletivo do maior sistema de saúde pública do mundo, o brasileiro.

CARTA MAIOR: Deixou de existir o velho Partido Sanitarista, que conseguia consensos suprapartidários para a área de Saúde Pública?

PAULO GADELHA: Ele ainda se reaglutina em momentos importantes, mas com características diferentes do que foi no momento de configuração da democracia, da inscrição do direito à Saúde na Constituição, da formatação do Sistema Único de Saúde (SUS). Naquela época, tanto isso refletia o movimento geral da sociedade como a natureza do próprio SUS. Hoje, as formas de participação e organização do sistema adquiriram dimensão, magnitude e canais participativos institucionalizados: as conferências municipais, estaduais e nacional, os conselhos, os fóruns onde os usuários se manifestam.
Aquilo que chamávamos de Partido Sanitarista era composto por intelectuais, instituições universitárias, institutos, alguns movimentos sociais e instituições que adquiriram um novo papel. Eles não são mais tão determinantes em relação a esse movimento. Hoje, por exemplo, uma conferência de Saúde, institucionalizada, tem milhares de pessoas, e, com todos os seus problemas, o SUS está implantado em milhares de municípios. Isso não quer dizer, todavia, que o movimento tenha simplesmente acabado. No mês passado, por exemplo, instituições como a Abrasco, a Cebes e a SBMFC apresentaram uma proposta de agenda estratégica de reforma sanitária para o ministro Eliseu Padilha. Nós fizemos uma proposta conjunta do movimento sanitário.

CARTA MAIOR: Do ponto de vista legislativo, existe ainda algum tipo de articulação entre sanitaristas?

GADELHA: Hoje é complicado chegar a um consenso de medida legislativa, mas começam a surgir grandes confluências. Há uma em sentido mais amplo – por exemplo, o reconhecimento do subfinanciamento da Saúde. Há pouco tempo, o discurso quase predominante era o de que o problema não era só de recursos, mas de gestão: se os desperdícios fossem corrigidos, poderíamos criar um sistema universal do porte que propomos. Estávamos pessimistas em relação ao debate sobre a regulamentação da emenda 29, mas o fato é que ele acabou revertendo esse discurso. Hoje se reconhece que a Saúde precisa de mais recursos, e os R$ 40 e tantos bilhões da CPMF viraram um ponto de referência em torno do qual se discute a fonte dos recursos e os mecanismos para garantir esse aporte. Para mim, isso é uma grande vitória: tirando uma ou outra voz dissonante, todos, por razões diversas, instrumentais ou não, da oposição ou da situação, concordam que a Saúde está subfinanciada.

CARTA MAIOR: O discurso do desperdício vem do fim da CPMF?

GADELHA: Sim, e o fim da CPMF representou uma fenda num momento muito importante. Àquela época, nós tínhamos um projeto estruturado, o “Mais Saúde”, tradução do Programa de Aceleração do Desenvolvimento (PAC) na Saúde. O ministério contaria com os recursos ordinários e com dinheiro suplementar, da CPMF. Toda a programação foi implodida, com o fim da contribuição. Uma série de metas e avanços que a Saúde que se estava desenhando ficou frustrada. Aquela perda foi extremamente danosa.

CARTA MAIOR: A retomada da idéia de um percentual fixo da receita corrente para a Saúde conquistou adeptos no decorrer da votação da regulamentação da emenda 29?

GADELHA: Isso faz parte de um processo. Se nós tivéssemos o que vigia anteriormente, um percentual da Seguridade Social para a Saúde, não teríamos subfinanciamento, porque isso implicaria valores para além desse aporte de R$ 47 bilhões hoje em discussão. Quando foi promulgada a Constituição de 1988, estava previsto que 30% do Orçamento da Seguridade Social [exceto o FAT] iria para a Saúde. Isso caiu em 1994. Também naquele ano foram subtraídos 20% dos recursos da seguridade por meio da Desvinculação das Receitas Orçamentárias [na época, Fundo Social de Emergência]. Se a participação da Saúde no Orçamento da Seguridade tivesse sido mantida em 30%, o Orçamento da Saúde teria passado de R$ 54 bilhões para R$ 110,10 bilhões em 2008. Era, então, 8,4% do PIB. A proposta de obrigar a União a contribuir com o correspondente a 10% do PIB seria uma melhora na participação pública dos gastos nacionais e Saúde – outro consenso é que essa participação é muito pequena, está na faixa de 42% e é inadequada sobre qualquer padrão internacional.

CARTA MAIOR: Com ou sem dinheiro de novo financiamento?

GADELHA: Aí é uma briga maior, contra a idéia de que a carga tributária brasileira é muito grande. Uma carga tributária na faixa dos 34,7% do PIB está abaixo da média dos países da OCDE, que está em 36%. Estou dando alguns dados que, do ponto da área que pensa a saúde, desconstroem fantasmas e falácias sobre o tema que se acumularam ao longo dos anos. Outra questão é o gasto per capita em Saúde: estamos abaixo de vários países, inclusive da América Latina. Outro dado é favorável ao modelo do SUS: não é todo o país com mais de 100 milhões de habitantes que tem uma proposta tão generosa e ambiciosa de um serviço universal de saúde, com princípios de equidade e integralidade. Dessa magnitude, não existe outro país no mundo. Os exemplos que temos de sistemas universais, como o inglês e o canadense, atendem populações muito menores. O desafio é condizente com essa escala. Isso num momento também em que o sistema de suporte social, de seguridade e de área da saúde, virou um tema central da avaliação sobre as perspectivas de sustentabilidade dos países. Isso é um problema que a China, os Estados Unidos e mesmo a Europa estão enfrentando fortemente.

CARTA MAIOR: Mesmo subfinanciado, o modelo foi bem-sucedido?

GADELHA: Paradoxalmente, com todas as críticas e dificuldades que nós vivemos com a Saúde, o SUS virou uma grande referência para vários desses países. Nós tivemos missões oficiais da China aqui, querendo saber como a experiência brasileira foi capaz de superar a fragmentação pré-existente no sistema de saúde e como ela conseguiu gerar um sistema integrado. No caso chinês, o sistema de saúde tem características bastante retrógradas. Uma das pessoas que os chineses convidaram para estudar o modelo chinês e propor uma reforma da Saúde naquele país foi o Temporão. Michel Marmot, um dos grandes nomes da saúde mundial, que foi coordenador da Comissão Social de Referências para a Saúde, deu uma declaração, numa reunião com ministros de Saúde de todo o mundo. Ele disse: eu dou um conselho a vocês, aprendam o português e vejam o que está acontecendo no Brasil em termos de constituição de um sistema de saúde.

CARTA MAIOR: Não corresponde muito à imagem que o usuário tem do sistema, ou corresponde?

GADELHA: É um desafio do movimento sanitário, agora, redesenhar a alma dos movimentos sociais e das populações em relação ao significado e relevância desse projeto. A população recebe muita coisa do SUS sem identificar de onde vem. O Programa Nacional de Imunização (PNI) é um dos mais bem-sucedidos do mundo; o programa de AIDS e de transplantes são referencia mundial. Todos são do SUS. O SUS vai muito além da atenção básica.

CARTA MAIOR: A sustentabilidade do sistema é dada apenas pelo financiamento?

GADELHA: A base unicamente financeira não basta, é preciso também formar uma base de sustentabilidade produtiva nacional. Uma das questões eu tenho colocado isso é que a Saúde tem que estar no cerne do diálogo com o modelo de desenvolvimento do país. Todas as áreas de ponta de desenvolvimento tecnológico estão associadas à Saúde, que é um ponto central do ponto de vista das fronteiras tecnológicas. O setor de Saúde no Brasil já é um grande empregador, ocupa 10% da força de trabalho qualificada do país. O setor envolve cerca de 8,4% do PIB. É também uma das áreas onde a questão do associativismo e da organização social está mais presente, e tem capacidade de produzir e reduzir iniqüidades regionais. Ela tem um componente que permite, de forma muito privilegiada, articular políticas sociais com políticas de desenvolvimento e com políticas de desenvolvimento produtivo.
Do outro lado, a Saúde é muito afetada pelos determinantes mais gerais que são produzidos pelo modelo de desenvolvimento. É a Saúde, que em última análise vai ter que responder a problemas e questões que vão sendo gerados também por um modelo de desenvolvimento que não seja saudável. É fundamental romper a dicotomia que muitas vezes existe no país, e até às vezes está escrito nas formas de organização, entre o que é considerado como política social e política de desenvolvimento.

CARTA MAIOR: Esse é o momento dessa discussão?

GADELHA: Se nós não nos anteciparmos ao que vai acontecer nas próximas décadas, essa questão vai se agravar intensamente, por conta da evolução demográfica. Em 2030, terá aumentado consideravelmente o percentual de idosos. A faixa de uso da atenção à Saúde e seu custo crescem consideravelmente a partir da faixa etária de 50 a 60 anos. A redução da mortalidade e a maior expectativa de vida não necessariamente implicam em redução da morbidade, ou seja, as pessoas podem viver mais tempo com a mesma doença. Um hipertenso há tempos atrás morria; um hipertenso hoje não morre, mas continua hipertenso e exige cuidados. Os próprios avanços na redução da mortalidade e promoção de saúde não implicam na redução de custo, além de obrigarem a reconfiguração de todo o sistema de saúde, porque passam a predominar as chamadas condições crônicas, que exigem uma forma de cuidado à pessoa mais integral. O que antes era considerado como uma separação – atenção primária, secundária, terciária – perde sentido. A forma do cuidado passa a ser muito mais complexa e integrada, e os custos mais os elevados. Eles serão maiores ainda se não houver uma base tecnológica nacional para dar conta disso.

CARTA MAIOR: É o momento de rediscutir rearranjos no SUS?

GADELHA: Eu imagino que sim. Uma das questões é repensar a reterritorialização da Saúde. A característica brasileira de três entes federativos resultou numa hiperênfase, num certo momento, à municipalização. A municipalização aproxima os investimentos das pessoas, dá um certo grau de autonomia, mas é uma opção que tem também seus problemas. Dependendo da natureza do problema e dos municípios, não há como lidar com a Saúde de forma municipalizada. O Ministério da Saúde está fazendo o Mapa Sanitário para fazer um recorte geográfico da Saúde, que indique qual o problema central dos territórios do ponto de vista epidemiológico, os recursos, equipamentos instalados, recursos humanos disponíveis. É uma forma de estudar como fazer a governança de Saúde de um território quando ele significa extravasamento dos municípios. Isso vai gerar uma rede permanente de prospecção em Saúde. Nós [Fiocruz, Ipea e Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE)] estamos terminando agora uma etapa, chamada de Livro Branco, para depois pensar cenários para 2030.
Esses cenários não são apenas para uso acadêmico, mas para indicar o que tendencialmente acontecerá se mudarem as condições atuais e o que seria o ideal e factível. O que se percebe: para se falar de espacialização no Brasil, o dado fundamental é que a grande maioria dos municípios brasileiros têm menos de 20 mil habitantes. Segundo dado: esses municípios estão perdendo população. E quem está ganhando população municípios com mais de 100 mil habitantes. Está havendo um deslocamento também das concentrações de saúde regional. Hoje passam a ter pólos mais concentrados demograficamente na região Centro-Oeste. Se você não pensar o mapa, da forma de atuar dentro da dinâmica que o Brasil está vivendo, você vai atuar atirando numa situação inexistente. Essa questão da territorialização, o papel dos entes federativos, de governança, isso é fundamental.

CARTA MAIOR: Inclui alguma governança coordenada entre municípios?

GADELHA: É, inclui. Não é centralização, mas a capacidade de definir metas, pactuar resultados, cobrar pelos resultados, definir formas de premiação por resultados, definir formas de ajustes nos programas em função de sua natureza. Alguns são centralizados, não adianta. Mas para fazer certos programas que exijam uma logística mais pesada, você terá a necessidade do governo federal muito presente, e dos Estados coordenando ações no âmbito de seu território. Outras questões podem ser da lógica municipal, mas não faz sentido pegar um município de poucos habitantes e repassar recursos para fazer sistemas de média e alta complexidade. Aí é jogar dinheiro fora. Nesse caso, pode se optar por consórcios entre municípios, e naquele mapa, descentralizar atenção básica e manter serviços de alta e média complexidade de forma mais centralizada.

CARTA MAIOR: A Saúde conseguiu uma integração satisfatória com os programas de distribuição de renda?

GADELHA: Eu diria que muito ainda precisa ser feito. A Saúde foi beneficiada pela geração de empregos, pelo processo de desenvolvimento econômico e pela melhor distribuição de renda, mas esses efeitos não foram acompanhados de estruturação das formas de diálogo com a organização do sistema de saúde. Hoje nós temos uma oportunidade imensa, na execução do “Brasil sem Miséria”.

CARTA MAIOR: Como vê a questão do financiamento?

GADELHA: É crucial, é uma balela dizer que você resolve o problema da Saúde simplesmente com gestão. A regulamentação da emenda 29 sem recursos adicionais é o mesmo do mesmo. Tem um significado muito importante porque rompe um patamar de muita dificuldade de enfrentar o problema da regulamentação. Agrega um pouco de valor porque Estados terão que colocar um pouco mais de recursos – não é porque mudou o percentual, mas porque muitos utilizavam os recursos da Saúde para outras finalidades.

CARTA MAIOR: Mas o ganho não é significativo.

GADELHA: Não é. Apenas alguns Estados que não cumpriam os seus 12%, ou maquiavam isso vão ter que colocar mais recursos na área da Saúde, mas isso não é significativo para o sistema como um todo. O que ela coloca é o desafio de agora, o que era um tabu, regulamentar ou não regulamentar, porque na hora que regulamenta – o que força num certo sentido é isso, queimamos mais uma etapa, e agora. Por isso eu digo que, num certo sentido, tantas vozes, algumas até surpreendentes, mostrando que a Saúde precisa de mais dinheiro.

CARTA MAIOR: Existe uma certa convergência em torno da fixação de um percentual de 10% do PIB para o Orçamento da Saúde.

GADELHA: Esta não é uma convergência. Seria um patamar confortável para a área da Saúde, e em torno dele se juntaram desde aqueles que defendem esse parâmetro há muito tempo, até a oposição, ou parte dela, como um desafio ao governo. Mas no governo não há consenso. Hoje o reajuste do Orçamento da Saúde já é feito com base na variação do PIB, aplicada sobre os gastos do ano anterior. Quando o PIB cresce muito o setor ganha; quando o PIB se aproxima de zero, há o efeito perverso, porque os gastos não param, população continua crescendo mas os recursos continuam os mesmos do ano anterior. A mesma coisa pode acontecer com as despesas correntes. O pessoal da economia da Saúde estuda várias alternativas. Uma delas é essa.

CARTA MAIOR: Por que não se consegue unificar governo e oposição em torno de um imposto para a Saúde?

GADELHA: Primeiro, por conta dessa idéia de que a carga tributária nacional é muito alta. Depois, tem essa afirmação, errônea, de que a CPMF é um imposto progressivo. E, finalmente, existe um cálculo político-eleitoral da oposição. A CPMF acabou virando uma espécie de Geni. A marca ficou muito ruim, inicialmente porque ela foi desvirtuada e desviada da Saúde. Houve também uma batida muito forte em torno da ineficiência do SUS, da corrupção. Naquele fatídico dia que antecedeu a discussão da CPMF (em 2007), houve no Palácio do Planalto uma das manifestações mais fortes e consensuais que eu vi de um certo campo político. Estavam lá representados vários entes federativos, movimentos sociais, tinha todas entidades de categorias presentes, tinha frentes de prefeitos – foi um ato extremamente significativo em torno do compromisso de que a CPMF seria usada exclusivamente para a Saúde, com desonerações previstas para correntistas de baixa renda. Quase houve um acordo com parte da oposição para votar. Esse acordo virou da noite para a manhã do dia seguinte, porque a oposição decidiu usar a votação para quebrar o governo. A derrota da CPMF trazia a idéia de desestabilização e ao mesmo tempo o uso eleitoral da extinção da contribuição."