terça-feira, 25 de outubro de 2016

Saúde, pós PEC 241 - Por Ligia Bahia


Publicado no Jornal O GLOBO - 24/10/2016

Poder Legislativo renuncia da função de formular políticas coordenará disputa pelas sobras de recursos 


Câmara dos Deputados aprovou um teto para despesas públicas; o apoio para cortar gastos em tempos de vacas esquálidas é quase intuitivo. Depois do convencimento de que há dinheiro público demais, saindo para os ladrões, aumentar despesas governamentais, em plena crise econômica, pareceria absurdo. Segundo defensores do novo regime fiscal, o que muda é o ritmo de incremento dos gastos e quem e como define prioridades. Nos próximos 20 anos, os orçamentos para a saúde poderão hipoteticamente dançar aos compassos do miudinho ou saltar sob um funk pauleira. No ano que vem, haverá um pequeno incremento, até os mais austeros reconheceram que a elevação dos recursos da Saúde de 13,5% para 15% da receita líquida não comprometería o andamento da economia.

Depois, será tempo de murici, cada um cuidando de si. Saúde, educação, ciência e tecnologia, cultura, esportes, entre outras políticas sociais, disputarão fatias de um fundo público diferente do atual. O valor dos gastos com políticas públicas não será a diferença entre o que se arrecada com impostos e contribuições e o pagamento de encargos e resgate da dívida. O teto ficará fixo, variando discretamente em tomo de uma inflação supostamente controlada, e a eventual elevação de receitas (se houver crescimento econômico, redução das taxas de juros, aumento de investimentos e empregos) será utilizada para pagar a dívida. O Poder Legislativo renuncia da função de formular políticas e coordenará a disputa pelas sobras de recursos.

Opositores das medidas restritivas questionam três âmbitos do redirecionamento da política fiscal. O primeiro refere-se à unilateralidade, consubstanciada em passar a tesoura em ações essenciais para a reprodução da vida e inserção social, sem cogitar ampliar receitas, sequer se referir às desonerações fiscais. O segundo domínio de interrogações concentra-se na impossibilidade de impor teto para obrigações previdência estabelecidas, que serão despesas crescentes durante os dez próximos anos. Ainda que se aprove a reforma da Previdência, o montante a ser dividido para as demais políticas sociais será necessariamente menor. E, por fim, a completa ausência de debates e esclarecimentos sobre as consequências, inclusive imediatas, da obtenção de maioria para aprovação da PEC 241. Os preços da governabilidade foram hiperinflacionados. Custa muito caro tomar o Ministério da Saúde um posto avançado da base parlamentar do governo, modelo recentemente replicado no Instituto Nacional do Câncer.
Pesquisas de opinião realizadas este mês apresentam resultados opostos em relação aos limites de gastos públicos. A da Confederação dos Transportes/MDA confirma a saúde como principal prioridade para 60,6% dos entrevistados e pouco conhecimento sobre a PEC 241: apenas 40,9% ouviram falar do teto para as despesas públicas e nesse subconjunto 60,4% aprovaram a medida. Na conduzida pela CUT/Vox Populi, a contenção das despesas com saúde, educação e assistência social por um prazo de 20 anos e aumento de acordo com a inflação foi rejeitada por 70%. Seja lá como se absorva ou conteste a validade dessas informações, é plausível inferir que ser favorável à punição da corrupção não autoriza manter ou aumentar taxas de mortalidade infantil e desigualdades de acesso às ações diagnósticas e terapêuticas.

Os críticos à Constituição de 1988, do pacto que vincula impostos a melhores condições de vida e saúde, não deveriam pular a parte da real situação do setor e o pagamento de tributos por toda a sociedade. A saída via planos privados individuais para que puder pagar só combinaria com renda alta, tributos reduzidos, mercados competitivos, irrelevância de pesquisas e inovações para a qualidade e prolongamento inexistência de doenças graves e prolongadas, como obesidade, autismo, demências, arboviroses. Objetivamente, os melhores padrões de saúde dependem de investimentos públicos. A da vida e crise econômica também afeta privadas. A falência da Unimed Paulistana e do Rio de Janeiro, a queda do número de contratos de planos de saúde decorrente do desemprego e mensalidades reajustadas acima da inflação pesam nas estreitas costas do SUS.

O sacrifício da saúde pública e da ciência e tecnologia foi questionado pela comunidade científica internacional. As conceituadas revistas "The Lancet" e "Science" publicaram depoimentos sobre os possíveis "desastres" da PEC 241, regressão de padrões alcançados de morbi-mortalidade e descontínuidade de pesquisas nacionais estratégicas. Decisões tomadas em fóruns reservados, empresariais, podem acalmar instantaneamente certos mercados, reafirmar credibilidade junto aos credores. Mas prejudicar uma geração inteira apavora quem tem por ofício ensinar, interrogar, buscar reunir evidências, equacionar problemas e testar e propor soluções. Um país que deixa de considerar mudanças demográficas, ocupacionais, sociais e ambientais na definição dos orçamentos para a saúde perde definitivamente integridade. 


Ligia Bahia é professora da UFRJ 
ligiabahia55@gmail.com


Fonte: https://www.abrasco.org.br/site/2016/10/saude-pos-pec-241-por-ligia-bahia/

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